Dois dos três comandantes das Forças Armadas que participaram de reuniões com o então presidente Jair Bolsonaro (PL) para discutir uma minuta de golpe de Estado, em dezembro de 2022, não foram indiciados pela Polícia Federal nesta última quinta-feira (21). O tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, da Aeronáutica, e o general Marco Antônio Freire Gomes, do Exército, não foram indiciados -- eles resistiram à tentativa de golpe. Situação distinta do almirante-de-esquadra da Marinha Almir Garnier Santos, que era favorável à 'virada de mesa democrática' e, por isso, figura está entre os indiciados pela PF.
O tenente-brigadeiro do ar disse em depoimento à PF que o general Marco Antonio ameaçou prender o ex-presidente Jair Bolsonaro caso levasse adiante uma tentativa de golpe de Estado. Como noticiou OVALE, em 15 de março, o ex-comandante da Aeronáutica estava em São José dos Campos quando enviou um recado ao então presidente: a força "não anuiria com qualquer movimento de ruptura democrática" (veja a reportagem mais abaixo).
A Polícia Federal indiciou 37 pessoas no inquérito que investiga tentativa de golpe de Estado após a eleição do presidente Lula (PT) -- o plano previa o assassinato do petista, do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSD) e do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
Entre os indiciados estão o ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos; o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor da Agência Brasileira de Informações (Abin); o ex-ministro da Justiça Anderson Torres; o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno; o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; o presidente do PL, Valdemar Costa Neto; e o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, Walter Souza Braga Netto.
Todos foram indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. O relatório com a conclusão das investigações foi enviado para o Supremo Tribunal Federal (STF) e ainda está sob sigilo.
Veja a reportagem publicada por OVALE em 15 de março, sobre o 'não' da Aeronáutica ao plano golpista:
São José dos Campos, sexta-feira, dia 16 de dezembro de 2022.
Em solo joseense, o então comandante da Aeronáutica Carlos Almeida Baptista Júnior enviou um recado direto ao presidente Jair Bolsonaro (PL), que havia sido derrotado nas urnas em outubro daquele ano: a força "não anuiria com qualquer movimento de ruptura democrática". É o que consta o depoimento prestado à PF (Polícia Federal) pelo hoje ex-comandante. Traduzindo: ele comunicou que a FAB (Força Aérea Brasileira) não endossaria um golpe de Estado.
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O episódio ocorreu a poucos metros de um acampamento bolsonarista em frente ao DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial), formado por manifestantes que não aceitavam o resultado da eleição presidencial, vencida por Lula (PT).
De acordo com o depoimento de Baptista Júnior, naquela data, após uma cerimônia de formatura no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), ele encontrou-se com o então ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno, um dos aliados mais próximos do presidente, e reforçou a ele que a Aeronáutica era contra qualquer movimento de ruptura democrática.
Segundo o relato, Heleno ficou 'atônito e desconversou'. O general havia solicitado uma aeronave da FAB para retornar a Brasília, porque Bolsonaro queria uma reunião de urgância para o dia seguinte, um sábado. Baptista foi com o ministro para uma sala reservada.
"O depoente [Baptista Júnior] afirmou de forma categórica ao general Heleno que a Força Aérea Brasileira não anuiria com qualquer movimento de ruptura democrática; que, por não ter sido convocado para a referida reunião, solicitou ao general Heleno que reafirmasse ao então presidente a posição do depoente e da Aeronáutica, que o general Heleno ficou atônito e desconversou sobre o assunto", diz a transcrição do depoimento à PF.
Dois dias antes, em 14 de dezembro, o ministro da Defesa do governo Jair Bolsonaro (PL), general Paulo Sérgio Nogueira, havia convocado os chefes militares para apresentar uma minuta de golpe de Estado contra a vitória de Lula. A afirmação foi feita em depoimento à PF por Baptista Junior e pelo então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes.
De acordo com eles, a reunião foi tensa e, segundo os relatos feitos à PF, o comandante da Aeronáutica deixou o gabinete do ministro da Defesa antes do término do encontro. A reportagem obteve acesso à íntegra dos depoimentos dos ex-comandantes à Polícia Federal. Eles afirmaram que a reunião ocorreu no dia 14 de dezembro de 2022.
Segundo o relato de Baptista Júnior (Aeronáutica), o ministro da Defesa afirmou no início da reunião que teria uma minuta que "gostaria de apresentar aos comandantes para conhecimento e revisão". Baptista Júnior disse que, logo após ver o documento, questionou Paulo Sérgio: "Esse documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito?".
"O depoente [Baptista Júnior] entendeu que haveria uma ordem que impediria a posse do novo governo eleito; que, diante disso, o depoente disse ao ministro da Defesa que não admitiria sequer receber esse documento; que a Força Aérea não admitiria tal hipótese [golpe de Estado]", diz trecho da transcrição do depoimento.
Também contrário a propostas golpistas, Freire Gomes (Exército) afirmou que a minuta levada por Paulo Sérgio (Defesa) era "mais abrangente" do que a apresentada dias antes pelo então presidente Bolsonaro. O texto também decretava o estado de defesa e criava a Comissão de Regularidade Eleitoral - medidas previstas no texto encontrado na casa do então ministro da Justiça, Anderson Torres.
Segundo o depoimento de Baptista Júnior, após o ministro da Defesa ser questionado sobre as intenções golpistas descritas na minuta, Paulo Sérgio permaneceu calado e nem sequer perguntou qual seria a percepção dos demais chefes militares sobre a proposta.
"O depoente, em seguida, retirou-se da sala; que a minuta estava sobre a mesa do ministro da Defesa Paulo Sérgio de Oliveira; que o almirante Garnier [então comandante da Marinha] não expressou qualquer reação contrária ao conteúdo da minuta, enquanto o depoente esteve na sala", prossegue o termo do depoimento.
O almirante Almir Garnier e os generais Paulo Sérgio e Braga Netto não têm se pronunciado a respeito das investigações. Em depoimentos à PF em fevereiro, os três ficaram em silêncio.
As revelações do antigos chefes militares colocam em evidência o último ministro da Defesa de Bolsonaro. Paulo Sérgio Nogueira assumiu o comando da pasta em abril de 2022 em sucessão ao general Walter Braga Netto, escolhido por Bolsonaro para ser seu vice na chapa presidencial.
Paulo Sérgio chegou à Defesa quando o governo Bolsonaro já realizava uma cruzada contra o sistema eleitoral. Foi sob sua responsabilidade que foi criada uma equipe de militares para fiscalizar o processo eleitoral e foi intensificada as críticas a supostas vulnerabilidades das urnas eletrônicas.
Mesmo sem a equipe das Forças Armadas ter identificado nenhuma fraude ou suspeita no processo eleitoral, o ex-ministro divulgou nota dizendo que o trabalho dos militares não poderia nem confirmar nem negar a lisura da eleição. Depois da reunião no Ministério da Defesa, Baptista Júnior disse à PF que passou a ser alvo de ataques nas redes sociais, sendo rotulado de "traidor da pátria" e "melância" em acusação de que ele seria um comunista disfarçado.
A versão de Baptista Júnior sobre os ataques sofridos é corroborada pelo relatório da Polícia Federal que embasou a Operação Tempus Veritatis. Segundo a PF, Braga Netto enviou mensagens ao capitão expulso do Exército Ailton Barros em ataques a Freire Gomes e Baptista Júnior a partir de 14 de dezembro de 2022, dia da reunião do Ministério da Defesa.
"Meu Amigo, infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do Gen Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente", escreveu o general. "Oferece a cabeça dele. Cagão", completou. Na sequência, ele enviou uma foto em frente à casa do então comandante do Exército, que fica em região próxima ao acampamento montado por bolsonaristas no Setor Militar Urbano, em Brasília.
No dia seguinte, Braga Netto voltou à conversa com Ailton Barros no WhatsApp para atacar o chefe da Aeronáutica. "Senta o pau no Batista Junior. Povo sofrendo, arbitrariedades sendo feita e ele fechado nas mordomias. Negociando favores. Traidor da patria. Dai pra frente. Inferniza a vida dele e da família", escreveu às 18h55 de 15 de dezembro de 2022. "Elogia o Garnier e fode o BJ", completou o general, como uma ordem. Ailton respondeu com uma figurinha que dizia "desce a chibata".
Na sequência, Braga Netto enviou uma imagem que comparava o brigadeiro Baptista Júnior ao personagem Seu Batista, da Escolinha do Professor Raimundo. O texto dizia: "cala a boca, Batista. Honra a farda, Baptista". Após as falas de Braga Netto serem reveladas no relatório da PF, Baptista Júnior escreveu nas redes sociais que, em razão da idade, não se iludia mais nem com as pessoas que considerava amigas.
"A ambição derrota o caráter dos fracos. Aliás ... revela. Já tendo passado dos 60 anos, não tenho mais o direito de me iludir com o ser humano, nem mesmo aqueles que julgava amigos e foram derrotados pelas suas ambições", escreveu o ex-comandante da Aeronáutica.
Braga Netto afirmou a interlocutores que de fato enviou as mensagens injuriosas aos chefes militares. Ele ainda disse que se arrepende do tom usado nos textos e alegou que foi movido pelo momento de tensão que cercou o entorno de Bolsonaro no fim de 2022.