23 de novembro de 2024
TRAILER EM CARTAZ

Luz, câmera e (memórias em) ação! Trailer de uma vida em cartaz

Por Guilhermo Codazzi | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 4 min
Editor-chefe de OVALE
Luiz Guillermo Codazzi
Meu avô Luiz, minha avó Ana, minha mãe (à direita) e tios

Trailer.
Uma vida em cartaz.
Take 1. Luz, câmera, memórias em ação. Fragmentos. 
Frames. Cenas cortadas. Fotogramas. Peças de um quebra-cabeça, sem pé nem cabeça.
Recortes de uma vida em tela. Tela grande. Um longa em curta-metragem. Medido à medida que o filme roda, roda, roda, roda… roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão… o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração...

Última sessão.
Já sobem os créditos da noite, 'ainda estou aqui'.
Lembranças de um filme preto e branco ganham versão Technicolor, como um lanterninha em dia de farol, capaz de iluminar as noites sombrias de condor.
Em flash back, recordo-me do meu avô Luiz Guillermo Codazzi e revisito memórias que não são minhas.
Com espírito documentarista, ele levava a tiracolo uma máquina fotográfica nas viagens a trabalho. Quando voltava para casa, em Buenos Aires, na Argentina dos anos 60 e 70, Seu Luiz reunia minha avó e os filhos, depois projetava as imagens na parede, transformando a casa em um cinema improvisado. Eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá...

Após a morte do meu avô, anos atrás, as caixas com as velhas fotos viram a luz novamente, depois de décadas de esquecimento. Digitalizadas, em um trabalho minucioso do meu tio Marcelo, as imagens dão novas cores ao filme PB de uma vida. Nelas, o retrato de uma vida que saiu de cartaz, mas ainda está aqui, em um filme que roda, roda, roda... roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão… o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração...

Nos registros feitos pelo meu avô, ao garimpar neste rio de memórias, há desde um desfile cívico na capital argentina até a construção da ponte Rio-Niterói, passando por um peão tocando a boiada em algum lugar do Brasil, os filhos que anos depois deixariam Buenos Aires em direção a Curitiba... há minha avó, jovem, passando batom diante do espelho. Linda. Certamente, coube à Dona Ana Maria o papel de estrela deste filme. A mais linda roseira que há.
Mas eis que chega a roda-viva e carrega a roseira pra lá... roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão… o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração...

Se havia cor naquelas fotos, a história oficial estava no negativo daquele filme.
Nos porões, a democracia era violada em noites de chumbo, tanto aqui, no Brasil, quanto lá, na Argentina. Lembro-me de minha mãe contando sobre amigos da rua que, simplesmente, desapareciam. Como conta ‘A noite dos lápis’, o livro que ganhou versão cinematográfica e conta a triste história real de adolescentes argentinos que, no ano de 1976, foram sequestrados, torturados e mortos pela ditadura do general Jorge Videla.
Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu/ a gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu/ A gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá... roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão… o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração...

Hoje, as caixas com as cenas cortadas da vida do meu avô estão com minha mãe, as originais. Estão em boas mãos.
Anos atrás, no dia do aniversário da minha mãe, nos falamos pelo telefone e ela me contou que estava lendo ‘A noite dos lápis’. Os alunos secundaristas torturados e assassinos tinham a idade da minha mãe, que se mudaria para o Brasil, ainda naquele ano. “E eu estou aqui por eles”, me contou minha mãe, antes de fazer uma pausa e desligar. Na foto da minhã mãe menina, no segredo dos seus olhos, havia um oceano inteiro a desaguar.
O samba, a viola, a roseira um dia a fogueira queimou, foi tudo ilusão passageira que a brisa primeira levou... roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão… o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração...

Este filme de uma vida em cartaz, fragmentado e que atravessa o tempo, esteve em cartaz no meu coração, enquanto 'Ainda estou aqui' era exibido na tela do cinema. Em uma das cenas do longa, ambientado no Rio de Janeiro do início dos anos 1970, Rubens Paiva (Selton Mello) e a esposa (Fernanda Torres) juntam-se aos filhos, na sala de casa, e projetavam um filme caseiro na parede. O mundo é ou não é uma película? Uma roda viva, que roda, roda, roda....

No peito a saudade cativa, faz força pro tempo parar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega a saudade pra lá Roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião, o tempo rodou num instante... nas voltas do meu coração.

The end.