21 de dezembro de 2024
PERSONA

'Prêmios incentivam pesquisa', diz cientista da USP de Piracicaba

Por Roberto Gardinalli | roberto.gardinalli@jpjornal.com.br
| Tempo de leitura: 7 min
Keiny Andrade

Responsável pelo laboratório do Cena (Centro de Energia Nuclear na Agricultura) da USP de Piracicaba, um dos centros de análises mais importantes do mundo, a pesquisadora Elisabete Aparecida de Nadai Fernandes foi uma das vencedoras do Prêmio Fundação Bunge, que homenageia cientistas brasileiros que tiveram participações relevantes no desenvolvimento de pesquisas. O prêmio, que tem inspirações no Nobel, é um dos mais importantes para a ciência brasileira.

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Homenageada na categoria Vida e Obra e no tema “Rastreabilidade na produção de alimentos: segurança alimentar, capacitação e redução de assimetrias regionais”, Elisabete possui um histórico relevante no desenvolvimento científico. Seus trabalhos correram o mundo e participaram de momentos que se tornaram famosos no imaginário popular. Entre eles, participou da análise do leite comprado pelo Brasil da Ucrânia soviética em 1986, quando aconteceu o acidente nuclear de Chernobyl. “A escassez de informações reais sobre o acidente de Chernobyl associada aos desafios para a rastreabilidade da origem dos produtos facilitaram a entrada de alimentos contaminados nos países importadores”, contou. Outro momento que teve a contribuição das pesquisas de Elisabete foi no ano seguinte, em 1987, quando aconteceu o acidente com Césio 137 em Goiânia. “O Cena tem se responsabilizado pela prestação desses serviços analíticos com emissão de cerca de 100 mil certificados para empresas exportadoras e demais interessados”, disse.

Para além dos laboratórios, a pesquisadora reconhece que o prêmio é a dignificação de uma carreira de 39 anos em pesquisas. “Prêmios de reconhecimento ao mérito como este incentivam os pesquisadores brasileiros a buscarem aprimoramento científico e desenvolvimento de pesquisas competitivas no cenário internacional”, afirmou. Confira a entrevista de Elisabete Aparecida de Nadai Fernandes.

Primeiro, gostaria que contasse um pouco da sua trajetória na sua área de atuação e à frente do laboratório do Cena, em Piracicaba.
Nasci em Limeira, em 24 de maio de 1952, e em 1970 vim para Piracicaba cursar Engenharia Agronômica na ESALQ/USP. Estagiei no Departamento de Química da ESALQ (1971-1974), sob orientação do Prof. Henrique Bergamin Filho e Prof. Nadir Almeida da Glória, em estudos de composição química de caldos e incrustações de usinas de açúcar e destilarias. Na colação de grau, em 19 de dezembro de 1974, recebi os Prêmios Conger e Codistil como destaque nas disciplinas de tecnologia de açúcar, álcool e aguardente. Em 1975-1976, participei de projetos de pesquisa de difusores de cana-de-açúcar, coordenados pelo Prof. José Paulo Stupiello, no Departamento de Tecnologia de Açúcar e Álcool. Em 1977, iniciei o Mestrado no CENA/USP sob orientação do Prof. Bergamin e, em 1985, o Doutorado na ESALQ, sob orientação do Prof. Epaminondas Sansígolo de Barros Ferraz. Em 1982, fui pesquisadora visitante por 6 meses no United States Department of Agriculture (USDA), Houma, LA, USA. A partir de 1988, tornei-me responsável pelo Laboratório de Radioisótopos, CENA/USP, desenvolvendo pesquisas na agricultura e ambiente, fazendo uso de técnicas analíticas nucleares. O trabalho pioneiro no setor sucroenergético permitiu rastrear as impurezas estranhas transportadas junto aos colmos de cana-de-açúcar do campo ao setor industrial das usinas de açúcar e etanol. Empregando a técnica de análise por ativação neutrônica, foi possível identificar os elementos químicos traçadores de solo e de planta, permitindo quantificar com exatidão as impurezas na matéria prima.

Sua atuação Cena foi premiada pela Fundação Bunge em 2024, um dos prêmios de valorização da ciência e pesquisa mais importantes do Brasil. Como a senhora vê esse reconhecimento para o seu trabalho e, também, para o Cena?
Ter sido selecionada para receber o Prêmio Fundação Bunge de 2024, um dos mais importantes reconhecimentos de mérito científico do Brasil, no tema Rastreabilidade na produção de alimentos: segurança alimentar, capacitação e redução de assimetrias regionais, é a consolidação e dignificação de minha carreira profissional nestes 39 anos dedicados à pesquisa, ensino e extensão no Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo.

Um ano antes da sua atuação nas análises dos produtos do acidente em Goiânia, aconteceu o acidente em Chernobyl, na Ucrânia. À época, começou a ser vendido e distribuido em escolas brasileiras leite produzido na Europa a um preço muito abaixo do praticado no país. O Cena teve um papel fundamental nas análises deste produto. O Cena ainda atua na análise de produtos que chegam de importação no Brasil? Como funciona?
Em 26 de abril de 1986, correu o acidente nuclear de Chernobyl, próximo a Pripyat, na Ucrânia soviética. A explosão do reator 4 da usina nuclear liberou imensa quantidade de material radioativo na atmosfera, que se precipitou em vários países da Europa, contaminando solo, vegetação e água e aumentando drasticamente o nível de radionuclídeos em alimentos. Nesta época, foi criado o programa econômico denominado Plano Cruzado com medidas restritivas para combater o quadro de hiperinflação que o Brasil enfrentava. Contudo, o congelamento de preços gerou desabastecimento de produtos essenciais no mercado interno, levando à decisão de importar alimentos. A escassez de informações reais sobre o acidente de Chernobyl associada aos desafios para a rastreabilidade da origem dos produtos facilitaram a entrada de alimentos contaminados nos países importadores. Foi assim que toneladas de produtos lácteos adentraram o Brasil, sendo comercializados a preços competitivos aos produtos nacionais. O Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da Universidade de São Paulo, desempenhou importante papel junto à sociedade brasileira, promovendo análises radiométricas de inúmeras amostras de leite em pó que eram enviadas ao Laboratório de Radioisótopos, especialmente por entidades civis preocupadas com os produtos que haviam recebido e que seriam destinados à alimentação infantil.

Um dos pontos interessantes da sua trajetória é a atuação nas análises dos produtos do agro brasileiro após o acidente nuclear de Césio-137 em Goiânia, em 1987. Como foi esse trabalho? Os exames ainda são necessários para a exportação de produtos do agro brasileiro?
No ano seguinte, em 13 de setembro de 1987, aconteceu o acidente radioativo de Goiânia com Césio-137, devido ao manuseio indevido de um aparelho de radioterapia abandonado numa clínica, provocando a contaminação de diversos locais e envolvendo direta e indiretamente centenas de pessoas. A partir dessa catástrofe, o Brasil passou a figurar a lista de países considerados contaminados radioativamente. Com isso, tornou-se obrigatória a emissão de certificados de não contaminação radioativa para os produtos agrícolas exportados. O Laboratório de Radioisótopos foi reconhecido oficialmente para análises radiométricas por espectrometria de raios gama, em conformidade com os requisitos internacionais. Nesse aspecto, há 37 anos, o CENA tem se responsabilizado pela prestação desses serviços analíticos com emissão de cerca de 100 mil certificados para empresas exportadoras e demais interessados. Para se ter ideia da relevância socioeconômica desta atividade, foram analisados 30% do açúcar exportado em 2023, correspondendo a 5 bilhões de dólares na balança comercial. Além disso, a renda decorrente da prestação de serviços permite investimentos em infraestrutura laboratorial e equipamentos para pesquisa e desenvolvimento em técnicas analíticas nucleares e metrologia na agricultura e ambiente, e concessão de bolsas de estudo para alunos de graduação e pós-graduação.

Hoje, a senhora lidera a pesquisa que tem como objetivo autenticar a origem regional das commodities brasileiras. O estudo contempla a produção de carne bovina, soja e madeira, por exemplo, e identifica a origem desse produtos, se é ou não fruto de áreas desmatadas, por exemplo. Como esse trabalho é feito e qual a importância dessa autenticação desses produtos?
A agricultura brasileira está sob pressão econômica, social e ambiental relativamente à sustentabilidade, sendo o desmatamento a questão central para manutenção da competitividade internacional do agronegócio e tema recorrente ligado à exportação de commodities, principalmente nos biomas Amazônia e Cerrado. Além do impacto ambiental causado pela extração de madeira nativa, a pecuária e a soja exercem potencial contribuição ao desmatamento devido à expansão das áreas de produção. Para manter a inserção dessas commodities no mercado, governo e partes interessadas devem atuar em prol de uma produção ecologicamente correta, tendo como palavras-chave a transparência e a rastreabilidade, uma vez que alguns países importadores estabeleceram regulamentações para proibir produtos oriundos de áreas desmatadas. Pesquisas têm sido desenvolvidas no CENA/USP em estudos de rastreabilidade e autenticidade de produtos, empregando técnicas analíticas nucleares e correlatas e inteligência artificial, para estabelecer modelos de discriminação que permitam  diferenciar origem e sistemas de produção com elevado rigor metrológico.

Por fim, na sua opinião, qual é o nível da pesquisa e produção científica brasileira atualmente? Como vê a importância de prêmios como esse, da Fundação Bunge, na valorização da ciência nacional?
A pesquisa e a produção científica brasileira têm enfrentado desafios estruturais, como insuficiência de financiamentos, burocracia excessiva, falta de apoio para captação de recursos, sobrecarga de atividades e baixa remuneração. Prêmios de reconhecimento ao mérito como este da Fundação Bunge incentivam os pesquisadores brasileiros a buscarem aprimoramento científico e desenvolvimento de pesquisas competitivas no cenário internacional.