25 de dezembro de 2024
ARTIGO

Não vou me adaptar


| Tempo de leitura: 4 min

“Y no te voy a envolver \ Sé que lo hacemo' y tú vas a volver (volver)”. O trecho em espanhol é o refrão de “Envolver”, canção de Anitta, que, recentemente, disparou nas paradas de sucesso do mundo.

São apenas 21 segundos. No videoclipe, durante esse curto refrão, a cantora performa uma mistura de rebolado ousado e sexy com movimentos que parecem ser de yoga.

O combo foi perfeito para que a plataforma de vídeos TikTok se enchesse de pessoas imitando a coreografia numa espécie de desafio.

Isso bastou (além de uma mãozinha de uma mega campanha dos brasileiros pela internet) para que a canção, lançada no fim de 2021, chegasse em março de 2022 como a mais tocada na plataforma de streaming Spotify (a primeira artista latinoamericana na posição 1 do Top 50 Global) e no topo das listas da Billboard, principal ranking musical do mundo.

As paradas de sucesso sempre foram contabilizadas por execução em rádios, clipes na TV ou venda de discos físicos. Agora, isso é algo tão ultrapassado quanto o fax e o telégrafo ou o CD-ROM e o disquete.

Com a comercialização de música pela internet, a indústria tem focado na produção de hits que se encaixem nas plataformas que realmente vão levar uma canção ao topo.

Além do TikTok, o Instagram também utiliza o streaming para a reprodução de música. A trilha sonora de fotos e vídeos na timeline do aplicativo, nos stories ou reels pode ser escolhida nos conformes dos direitos autorais pagos.

A novidade é que o Instagram agora vai permitir também o envio de música por mensagens. Tudo isso vale como reprodução para as paradas de sucesso -- o que significa maior repasse de direitos, aumento de prestígio do artista e maior vendagem de shows.

A música tem sido pensada de forma completamente diferente nos dias atuais. Os álbuns, produtos fechados com uma quantidade de músicas enumeradas, proposta temática de uma fase do artista, estão cada vez mais raros.

O mais comum é o lançamento de músicas isoladas (singles), geralmente em parceria com outros artistas (feat) para atrair mais público, sempre acompanhada de vídeos que devem se encaixar nos padrões das plataformas digitais.

As canções, se já eram encurtadas para caber na programação das rádios, estão ainda mais, com refrões que devem caber em um curto vídeo do Tiktok ou nos segundos disponibilizados nos stories e reels do Instagram.

A padronização do consumo de música pela internet é irreversível, mas a forma do consumo não deve se estagnar. A cada dia, surgem novas ferramentas e novos aplicativos que possibilitam a reprodução musical. O que dá para perceber é que tudo precisa ser curto e rápido.

Outras formas de consumo de arte também têm sido influenciadas pelas redes sociais. O cinema é uma delas.

Filmes de produtoras como DC e Marvel precisam ter roteiros com reviravoltas a cada dez minutos para prender a atenção dos jovens. Isso porque, nas redes sociais, eles estão cada vez mais acostumados a vídeos curtos e 90 minutos em frente de uma tela pode não ser tão empolgante se não houver explosões, tiros, mortes e ação a todo momento.

A produção cultural está em constante mudança, mas isso não significa que o produto artístico precisa necessariamente seguir uma regra com base no consumo e no mercado. A arte, por si só, é transgressora.

Se de certa forma, plataformas como Tik Tok e Instagram estão promovendo mais música, elas também estão matando a forma de fazer música. Por que um canal que serve como divulgador da arte produzida por alguém precisa estabelecer as regras do jogo?

Vivo e compreendo as mudanças, as novas gerações e as novas dinâmicas. Mas me dá pena saber que alguém não pode parar por um momento e ouvir um álbum completo onde um artista se debruçou para expressar sua ideia. Não tem paciência de ver um filme longo, cheio de nuances sublimes onde o ápice é a beleza.

Com o futuro chegando a cada passo que dou, também sinto saudades de um passado recente com minhas coleções de álbuns favoritos e filmes que me ajudaram a ser quem sou.

Sei lá! Talvez seja apenas mais uma crise geracional.

Enquanto escrevo esse artigo, uma velha canção me vem à mente! “Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia? Eu não vou me adaptar”.

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