05 de dezembro de 2025
'CAIPIRALIDADE'

‘O caipira é nossa marca', diz Cecílio Elias Netto

Por Roberto Gardinalli | roberto.gardinalli@jpjornal.com.br
| Tempo de leitura: 7 min
Arquivo Pessoal

Com 84 anos recém completados em 24 de junho de 1940, o jornalista piracicabano Cecílio Elias Netto segue ativo com seus artigos de relevância atemporal. Com toda a bagagem conquistada em mais de 70 anos de carreira, o jornalista foi membro do Conselho Editorial do Jornal de Piracicaba, além de colecionar passagens em redações relevantes do interior paulista, como o Correio Popular, de Campinas, e Diário de Limeira, entre tantos outros espaços de renome. Renomado jornalista, foi, também, vice-presidente da Adjori (Associação dos Jornais do Interior de São Paulo) e membro de instituições como: Academia Paulista de Jornalismo, UBE (União Brasileira de Escritores); a antiga Academia Piracicabana de Letras e do IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba). Na bagagem, conta com cerca de 30 livros publicados, entre eles “Bom Dia – Crônicas do autoexílio e da prisão”, “Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva” (com seis edições revistas e ampliadas), trilogia sobre a cidade, formada pelas obras “Piracicaba que amamos tanto”, “Piracicaba, um rio que passou em nossa vida” e “Piracicaba, a doçura da terra”, “Piracicaba, a Florença Brasileira” e “100 anos da imigração japonesa em Piracicaba”.

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A experiência fez com que o jornalista, que também é bacharel em Direito, se tornasse uma referência não só em Piracicaba, mas em todo o estado de São Paulo. Apaixonado por sua terra natal, Cecílio conhece cada canto de Piracicaba como a palma da mão. E sabe de histórias que muita gente nem desconfia da existência. Por exemplo, você sabia que a caipirinha, bebida mundialmente conhecida e amada, foi inventada em Piracicaba? Pois é, Cecílio confirmou. “É verdade e, infelizmente, por antigo conservadorismo ideológico e religioso, Piracicaba abriu mão de algo que se tornou valor nacional”, disse. Com esse conhecimento, se mantém como um defensor da cultura piracicabana, na luta pela manutenção das características que tornam a identidade de Piracicaba tão única em todo o Brasil. “O caipira é nossa marca que deveria ser cultivada”, afirmou.

A vivência torna Cecílio um arquivo vivo das memórias da cultura piracicabana e seu legado para a cidade é importantíssimo. Sendo assim, aproveite a entrevista que o jornalista concedeu ao Jornal de Piracicaba e conheça mais um pouco sobre as histórias de Piracicaba e opiniões sobre os rumos da cidade.

O linguajar caipira é considerado um patrimônio cultural. O sotaque é muito característico e reconhecido em todo o Brasil. Apesar disso, é menosprezado nas grandes cidades e, muitas vezes, no próprio interior. Na sua visão, por que isso acontece?
Por muito tempo, a pronúncia característica dos cariocas foi considerada referencial no país. O Rio de Janeiro era a capital brasileira, e grande a sua influência. O chamado “sotaque caipira” era característica dos paulistas. E Piracicaba, no passado, era tida como a “capital do sertão”. A maneira de falar diferia da dos cariocas e, também, das mudanças na própria cidade de São Paulo. O pernóstico elitismo social tentou ridicularizar a nossa identidade mas fracassou. O caipira é nossa marca que deveria ser cultivada.

Um dos exemplos sobre o tratamento do linguajar caipira é o fato de muitas coisas no interior levarem nomes em inglês. Mais recentemente, a Prefeitura de Piracicaba batizou a ciclovia em construção como Riverside e, depois, abriu votação para a população escolher um novo nome. O escolhido foi CicloPira. O que o senhor achou do primeiro nome ser em inglês? E o nome escolhido pela população, o que o senhor achou?
Considero apenas tolice. E ignorância. É incrível que, em pleno século XXI e com as transformações que se vão renovando, ainda haja quem aceite esse superado e antigo colonialismo cultural. A ciclovia será conhecida pelo nome que o povo – não apenas os consultados – lhe der. Por que não “caipiródromo”?

Foi instalada uma passarela para pedestres, feita em concreto, que atravessa o rio Piracicaba e essa obra passou a fazer parte da paisagem local. O que o senhor achou dela?
Desde o início, um atentado à paisagem. Parece querer enfrentar a natureza, impor-se sobre o rio. Delírio de quem deseja fazer o “diferente”, sem se harmonizar com o ecológico.

Há uma lenda que diz que a tradicional e amada bebida caipirinha foi inventada em Piracicaba. Isso é verdade? Qual a história por trás dessa lenda?
É verdade e, infelizmente, por antigo conservadorismo ideológico e religioso, Piracicaba abriu mão de algo que se tornou valor nacional. Foi em 1917, durante a “gripe espanhola”. Para enfrentá-la, fizeram-se diversas tentativas, experiências. Uma delas foi uma mistura contendo cachaça, limão, mel e alho. O pessoal gostou e tiraram o alho da bebida. Depois, substituíram o mel por açúcar. E, como foi criação do caipira caipiracicabano, foi batizada de caipirinha. Havia, porém, uma campanha fortíssima da Igreja Metodista em favor da temperança. E a cidade fingiu aceitá-la. O registro disso fora feito pela Associação Nacional da Cachaça. Mas parece que, por alguma pressão, o registro foi excluído. Piracicaba perde um valor importantíssimo, mesmo porque o aperitivo é, hoje, também marca da nacionalidade.

Piracicaba é uma cidade que possui um acervo histórico riquíssimo, que conta toda a história do desenvolvimento econômico, industrial, cultural e social do interior e de todo o estado de São Paulo. Porém, vemos que o patrimônio histórico de Piracicaba não é preservado como em outras cidades. Na sua visão, por que Piracicaba não cuida do próprio patrimônio histórico? Esse patrimônio está se perdendo?
Penso ser consequência de uma crise, de uma transição mundial. O Papa Francisco – que considero a grande liderança moral de nossos tempos – insiste em advertir-nos para o que denomina “Era da Indiferença”. O individualismo está apequenando o ser humano. E, por outro lado, há o imediatismo das falsas lideranças políticas, lamentavelmente despreparadas, quase todas elas, para esse novo mundo, essa nova sociedade que se está consolidando. Há, porém, instituições lutando pela preservação, como o IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba). Nossa cidade, nossa gente sempre soube preservar o que precisa ser conservado. E conservar o essencial é fundamental para criar, receber, acolher o novo necessário.

Os documentos históricos são importantes para a preservação da história da cidade. O senhor sabe onde esses documentos estão guardados? Por que Piracicaba não tem um acervo histórico?
 Pode-se questionar que não haja um centro unificador de memória. Mas há acervos extraordinários em diversas instituições, como o já citado IHGP. A Câmara Municipal, atualmente, cuida eficientemente disso; o Museu Prudente de Moraes, a Esalq, a formidável biblioteca dos franciscanos, acervos de particulares. Há, sim, riquezas culturais preservadas, mas quase ocultas.

Por que hoje a tradição artística de Piracicaba parece se perder?
Ainda, a transição, o delírio da velocidade, do descartável, do provisório. Uma observação clássica de Santo Agostinho ainda, no entanto, prevalece: “A beleza salvará o mundo”. A arte não morre.

Em 2024 teremos mais uma eleição municipal. Nessas épocas é comum que a população se lembre com mais afinco de antigos políticos que fizeram parte da história da cidade. Na sua opinião, qual foi o melhor prefeito da história de Piracicaba?
Não creio que seja possível fazê-lo. Cada época, naturalmente, tem suas peculiaridades, exigências. Um dos mais notáveis foi Paulo de Moraes Barros, cujo governo foi considerado, nacionalmente,  “exemplo de administração pública”. Tivemos, desde o advento da República, nomes notáveis no comando do Poder Executivo. E outros, decepcionantes. Dos governos municipais que observei nesses meus quase 70 anos de carreira, considero relevantes os de Luciano Guidotti, Salgot Castillon, Cássio Padovani.

Quais projeções o senhor faz para a política piracicabana neste ano tão importante?
Receios, preocupações. Percebo não haver cuidados em relação às novas realidades que vivemos. Com raríssimas exceções, vejo grupos político-partidários como que ausentes das revoluções transformadoras de nosso tempo. Muito do que serviu antes não serve mais. O novo essencial exige conhecimento, abertura de coração, humildade, consciência pública ainda mais aguçada. Não há mais espaço para o líder messiânico, salvador, providencial. Candidaturas isoladas nada significam. Governar – hoje, mais ainda do que antes – é fazê-lo em equipe, com planejamento e, em especial, com conhecimento da história e da mentalidade do povo para o qual se governará. Está passando a hora de candidatos serem indicados por grupos sociais aos partidos políticos e não de estes indicarem-nos à população. A democracia está em desafiador processo de transformação. Mas isso, infelizmente, parece não se perceber no nosso mundo político caipira. Mudanças acontecerão de baixo para cima. Os que estão nas altitudes que se previnam.

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