O novo projeto de lei que prevê banir os celulares em escolas públicas e privadas do estado de São Paulo esbarra no sistema de educação centrado em plataformas digitais implantado pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) na rede estadual.
Em um debate sobre a proposta que aconteceu na Assembleia Legislativa, na noite de segunda-feira (10), médicos, pais e educadores falaram sobre os prejuízos dos smartphones ao aprendizado e à saúde física e mental de crianças e jovens.
Ao final, quando o debate abriu para o público, uma professora da rede paulista chorou, dizendo que hoje é impossível impedir o uso do celular nas escolas porque, nas palavras dela, vivemos uma epidemia de plataformas digitais na educação paulista - o secretário de educação, Renato Feder, defende que a tecnologia é essencial para auxiliar os professores no processo de recuperação e melhora da aprendizagem.
A professora relatou que o corpo docente é pressionado a cobrar que os alunos acessem as plataformas, e, como não tem computador ou tablet para todos, o celular acaba tendo que ser usado, e a maioria se distrai em redes sociais. Ela disse ainda que o uso de uma ou outra plataforma pode ser interessante, mas que atualmente há excesso.
Esse tem sido um relato comum. Uma outra professora contou à Folha que, depois da pandemia, havia entre os docentes uma tentativa de conter o uso dos celulares pelos alunos, diante do aumento da ansiedade e da falta de atenção, mas que, no ano passado e neste, com a implementação de uma série de plataformas do governo Tarcísio, a orientação teve que ir no sentido contrário: usar mais o celular.
A deputada Marina Helou (Rede), autora do projeto de lei que prevê a proibição dos celulares nas escolas, disse que há integrantes da Secretário da Educação sensíveis ao debate sobre os impactos negativos dos celulares. "Temos que fortalecer o debate, porque esse é um assunto novo, e precisamos convencer o governador. Temos que marcar reunião com ele, com o Renato", disse a deputada, que começou a visitar escolas para debater o projeto de lei.
O Movimento Desconecta, formado por famílias que defendem o banimento dos celulares nas escolas, estava presente ao debate da Alesp. Baseado em pesquisas sobre os danos do uso dos aparelhos, o movimento propõe que os pais não deem smartphones a crianças e adolescentes até os 14 anos e que as redes sociais só sejam usadas após os 16.
O grupo afirma que uma lei que proíba os celulares nas escolas vai acelerar o processo.
"É injusto e irresponsável de nossa parte esperar que crianças e adolescentes consigam mudar hábitos que nós adultos não conseguimos; essa tecnologia foi criada para viciar", disse Fernanda Cytrynowicz, uma das fundadoras do movimento.
Também participaram do evento da Alesp dois pediatras engajados na campanha pela proibição dos celulares nas escolas, Daniel Becker e Paulo Telles. Ambos mencionaram pesquisas que evidenciam uma série de prejuízos dos smartphones na infância e na adolescência.
"Danos cognitivos, obesidade, miopia, problemas auditivos... São inúmeros", afirmou Telles. "Os smartphones são prejudiciais para as sinapses, para a arquitetura do cérebro, que está em formação nessa fase. Estamos minando o cérebro de nossas crianças", afirmou ele.
"No Vale do Silício [região de empresas de tecnologia nos EUA] há cada vez mais escolas que não utilizam tecnologia. Quem cria a tecnologia a joga para nós e tira dos próprios filhos", afirmou. "Nos EUA já há alguns estados em que há mais ambulatórios para jovens com vício em telas do que para drogas", contou.
"São várias evidências de um pior desempenho neurológico, do aumento das taxas de depressão, ansiedade, suicídio e automutilação entre crianças e jovens. A gente implora para que essa lei seja aprovada", afirmou o pediatra.
Becker participou dos debates que levaram a um decreto que baniu os celulares das escolas municipais do Rio.
"Estamos falando dos celulares, não da tecnologia como um todo. Claro que queremos que nossas crianças e jovens sejam usuários criativos da internet, mas é preciso afastá-los dos celulares, que estão trazendo um adoecimento", disse.
Ele disse que um recreio sem celular é essencial, até porque tende a ser o único momento em que crianças e jovens poderão viver experiências sem o aparelho. "Eles têm que brincar, ler, conversar, jogar bola, ralar o joelho, aprender a ser excluídos e a se incluir novamente, brigar sem bloquear e depois se reconciliar, entender que é preciso cumprir tarefas, se concentrar, que não se ganha gratificação o tempo todo."
Diretora da Camino School, escola particular de São Paulo em que o celular é proibido, Letícia Lyle participou do debate e disse que não foi fácil implementar essa medida. "Tivemos uma revolução dos adolescentes. Fizeram cartazes, deitaram no chão", contou. "Mas, depois de uns três, quatro dias, uma mágica aconteceu: eles começaram a conversar, brincar, namorar, jogar xadrez, ler. Eu os convido a assistir a um intervalo."
Ela falou que há problemas ainda, como alunos que deixam de ir a excursões da escola porque não querem ficar sem o celular, além de pais que se sentem inseguros porque querer ter contato com os filhos o tempo todo. "Precisamos do apoio dos pais, mas isso é, sim, um problema da escola também. É de toda a sociedade."
Estudante de uma escola da rede estadual, Mirella Silva fez parte da mesa e disse que os celulares estão atrapalhando o aprendizado. "Ninguém aprende direito no online, vimos isso na pandemia. E, quando estamos com o celular, entre usar a plataforma de ensino e as redes sociais, claro que usamos as redes sociais. Os professores têm que ficar cobrando a gente para usar as plataformas e acabam nem dando aula."
Procurada para comentar as críticas sobre as plataformas e o projeto de lei dos celulares, a Secretaria de Educação (Seduc) mandou a seguinte nota: "O acesso às plataformas pedagógicas não é feito por smartphones e, portanto, não há como associar o uso delas na sala de aula ao uso de celulares. As plataformas disponibilizadas pela pasta são acessadas exclusivamente em notebooks e tablets da Seduc-SP. A secretaria mantém restrito nas salas de aulas das escolas, desde início do ano letivo de 2023, o acesso por meio de celulares ou qualquer outro dispositivo a aplicativos e plataformas sem fins educativos por meio da rede de internet cabeada e wifi".