25 de dezembro de 2024
ARTIGO

Versões e distorções historiográficas


| Tempo de leitura: 3 min

Desde 1889, a historiografia republicana adulterou muita coisa da História do Brasil com fins propagandísticos. Em livro clássico, intitulado "O imaginário da República no Brasil", José Murilo de Carvalho trata dessa manipulação histórica. D. Pedro II, por diretrizes do Governo republicano, somente deveria ser representado nos livros escolares como velho de barbas brancas, enquanto Deodoro, que tinha barbas brancas e estava quase agonizante quando proclamou a república, devia ser representado de barbas negras, de modo a associar a ideia de velharia à monarquia, e de futuro promissor à república.

No caso concreto de D. João VI, as descrições caricatas (franguinhos nos bolsos, roupa suja etc.) foram largamente repetidas, mas sempre houve bons historiadores que lhe fizeram justiça, como Oliveira Lima e Pandiá Calógeras. Sua esposa, D. Carlota Joaquina, também foi muito caluniada, porque tomou francamente posição em favor de D. Miguel contra D. Pedro, no caso da sucessão ao trono português. Isso fez com que toda a historiografia liberal portuguesa e brasileira, que predominou no século XIX, a diabolizasse. Mas no século XX a historiografia lusa ficou mais equilibrada, e D. Miguel já não é sempre apresentado como absolutista, usurpador e cruel, como continua sendo apresentado no Brasil.

D. Carlota Joaquina podia não ser bonita nem simpática, mas tampouco era monstruosa como costuma ser apresentada. Ela teve a infelicidade de ter um secretário sem nenhum caráter, chamado José Presas. Era um uruguaio que cuidava dos papéis dela. A certa altura, ele ficou tão atrevido e inconveniente que ela o despediu. Ele vingou-se escrevendo um livro, intitulado "Memórias Secretas de D. Carlota Joaquina", acusando-a de uma porção de coisas, inclusive adultérios e traições ao marido. Como convinha, aos liberais portugueses pôr em dúvida a legitimidade da filiação de D. Miguel, filho mais novo de D. João VI e D. Carlota, eles propagaram a calúnia.

Quanto à Princesa Isabel, ela não era nem um pouco simplória, como a propaganda republicana a apresentava. Muito pelo contrário, era uma mulher de valor extraordinário. Basta ver como enfrentou o escravagismo e promulgou, em 1870, a Lei do Ventre Livre e, em 1888, a Lei Áurea. Isso, numa época em que as mulheres nem sequer tinham direito de voto. Ela exerceu a função de imperatriz de fato (como regente) em três períodos, que somaram quase 5 anos, em que seu pai viajou pelo estrangeiro. E foi uma grande estadista. Se não tivesse sido deposta a monarquia, com toda a certeza teria sido uma grande imperatriz. Tinha personalidade, sabia o que queria e teria sucedido brilhantemente ao pai. Seus planos de governo tinham como prioridade integrar convenientemente na sociedade os ex-escravos, que foram abandonados pela administração republicana. Ela pretendia distribuir terras públicas aos ex-escravos e facilitar o acesso deles a escolas profissionalizantes. Tudo isso foi abortado pela república.

Uma das primeiras atitudes de Deodoro foi transformar a dotação do antigo imperador em salário do presidente, e logo de cara dobrá-la. Só que D. Pedro, com sua "caixinha", dava bolsas de estudo e fazia assistência a centenas de pessoas, que ficaram "órfãs" da proteção imperial...

Em 1890, o Tribunal de Contas da União impugnou o pagamento do salário mensal de um conto de réis ao irmão de Deodoro, que no Ministério da Viação era o que hoje se chamaria funcionário fantasma: recebia sem trabalhar. O próprio Deodoro é que pedira ao Ministro da Viação, Limpo de Abreu, essa sinecura para o irmão. Irritado com a demonstração de independência do Tribunal, Deodoro espediu uma série de decretos que, na prática, tolhiam a sua autonomia.

A República foi proclamada em nome da plena igualdade entre os homens, rejeitando tudo o que soubesse a Cortes, a Nobreza, a dignidades honoríficas do Império. Isso não impediu, entretanto, Deodoro de conceder, em menos de um ano, mais grã-cruzes da Ordem de São Bento de Avis do que D. Pedro II concedera em meio século de reinado. E sabe-se com certeza hoje, muitas dessas outorgas foram feitas com despachos antedatados, já depois de entrada em vigor a nova Constituição que declarava extinta aquela Ordem.

Com Deodoro, a República estava apenas dando os seus primeiros passos. Muitos mais daria depois.

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