25 de dezembro de 2024
ARTIGO

Anchieta e o problema da inculturação

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

No contexto das grandes navegações dos séculos XV e XVI, problemas teológicos e pastorais novos surgiram.

Despertou grande polêmica, por exemplo, a tentativa de “inculturar” o Cristianismo na China, iniciada pelo célebre jesuíta Pe. Mateus Ricci e continuada pelo Pe. Diego de Pantoja, a qual despertaria grande polêmica entre os teólogos europeus e até hoje ainda é objeto de debates. No plano teórico, o assunto é simples e claro, todos reconhecendo pacificamente que as missões católicas, em princípio, devem respeitar os valores das culturas locais em tudo o que não conflite diretamente com a Revelação e os Dogmas do Cristianismo; foi o que fizeram os Apóstolos Pedro e Paulo, que se adaptaram aos costumes gregos e romanos nos quais pretendiam fazer sua pregação. Já no campo da práxis, porém, nem sempre é fácil precisar com toda a clareza até onde pode ir, em cada caso concreto, essa adaptação aos costumes locais.

O exemplo mais lembrado é o do ritual do batismo, no qual o sacerdote, a certa altura, pega um pouco da sua própria saliva e com ela toca os ouvidos e as narinas do batizando, para significar a abertura dos ouvidos para as verdades da fé e do olfato para aspirar o bom odor de Jesus Cristo. Esse gesto simples, rememorativo de um milagre que fez Jesus Cristo quando, com a própria saliva misturada com terra, curou um doente, era algo inaceitável em certas regiões do Oriente. Para os indianos, por exemplo, nenhuma secreção humana é tão repugnante quanto a saliva. O ritual do batismo, universalmente aceito e praticado, nessas regiões era um obstáculo cultural intransponível para a evangelização. O assunto foi muito debatido e, afinal, submetido à Santa Sé, que autorizou a utilização de um ritual diferenciado para essas regiões, sem a utilização da saliva. Teologicamente, o Papa considerou que o essencial, no batismo, era a ablução com água acompanhada da recitação da fórmula sacramental, sendo a saliva elemento secundário e acidental, perfeitamente passível de ser eliminado sem risco da integridade do batismo. Esse é um exemplo típico de adaptação aos costumes locais, sem transigência com os dogmas católicos.

Já antes de Ricci, São Francisco Xavier havia iniciado, no Japão, uma política de adaptação cultural, quando se apresentou com ricos trajes de nobre e não com a simples roupeta jesuítica, a qual seria incompreensível para os nipônicos da época, que não conseguiriam entender que um homem vestido pobremente pudesse ser portador de uma mensagem de alto valor, digna de ser ouvida e tomada em consideração.

Antes, também de Ricci, aqui no Brasil São José de Anchieta de certa forma seguiu a mesma política de inculturação, pois valorizou a cultura indígena, sistematizando a gramática Tupi, utilizando seu idioma em peças teatrais e em composições poéticas, e chegando a afirmar que era uma língua riquíssima, cheia de sutilezas e muito adequada para a produção de altas obras literárias. O Tupi era designado pelos primeiros missionários como “o Grego da Terra”. A utilização do termo Tupã, o trovão, que na religiosidade tupi designava o seu deus maior e mais poderoso, para identificar o Deus único dos cristãos, e a adoção do termo Tupanci (mãe de Tupã) para designar a Virgem Maria, são, também, exemplos de inculturação que vêm dos tempos de Anchieta.

O hábito do canibalismo foi severamente combatido pelos jesuítas, porque contrário à Lei Natural. Embora disseminado entre muitas tribos, era visto com horror por outras - como por exemplo os Carijó e os índios da Patagônia. Nessa matéria os jesuítas foram intransigentes, assim como o foram no combate à bebedeira e à poligamia. Mas no que não era essencial, foram flexíveis: por exemplo, pediram a Roma que abrandasse o Direito positivo eclesiástico no tocante à autorização de casamentos entre primos. Isso porque a Igreja, que longamente se empenhara para impedir casamentos entre consanguíneos muito próximos, estabelecera na Europa regras rígidas a esse respeito. Já bem antes do conhecimento das leis da Genética, que só seriam descobertas pelo monge Gregor Mendel no século XIX, sabia-se empiricamente que casamentos entre consanguíneos próximos produziam com frequência problemas de saúde, e a Igreja procurava evitá-los. Mas aqui no Brasil, era praticamente impossível, numa taba, um índio casar a não ser com uma prima. Era impensável, na cultura indígena, casar com alguém de outra taba. Anchieta, ainda noviço de 20 anos de idade, em carta a Santo Inácio de Loyola, Geral da Companhia, defendeu o abrandamento do Direito canônico nessa matéria.

Nem Xavier nem Anchieta transigiram com os princípios cristãos, mas souberam se adaptar aos costumes e aos valores culturais dos povos junto aos quais trabalhavam.

O problema concreto da China era que o confucionismo - sistema filosófico e ético-moral complexo, em que há imensa sabedoria natural que podia ser incorporada ao Cristianismo, assim como já ocorrera com muitos elementos da sabedoria dos filósofos gregos e romanos - era também passível de ser interpretado como sendo uma religião rival e, portanto, em necessário conflito com o Catolicismo. Foi esse o fulcro dos debates ocorridos entre os teólogos europeus, sobretudo contrapondo dominicanos a jesuítas.

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