25 de dezembro de 2024
ARTIGO

Forma e fundo perfeitamente conjugados

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 5 min

Camões dividiu “Os Lusíadas” em 10 cantos, com um total de 1102 estrofes, oitavas rimadas no esquema clássico de ab, ab, ab, cc - ou seja, o 1º, o 3º e o 5º versos rimando entre si, e alternadamente, também rimando entre si, o 2º, o 4º e o 6º versos; e, por fim, fechando a oitava, o 7º e o 8º também rimados entre si.

Na imensa maioria, são versos heróicos, com acentuação na 2ª ou 3ª, na 6ª e na 10ª sílabas; excepcionalmente, encontram-se no poema alguns poucos versos sáficos, decassílabos com acentuação na 4ª e na 8ª sílabas. Essa intercalação de alguns sáficos num poema composto por heroicos tempera agradavelmente a homogeneidade rítmica, impedindo que se transforme em monotonia.

Fundo e forma se conjugam admiravelmente nos versos de Camões. Bem escreveu Olavo Bilac: “Quem não vence as dificuldades da métrica para, em versos perfeitos, expor incólume o seu pensamento, não nasceu artista. O Poeta se manifesta no fundo, o Artista na forma.”

À maneira das epopéias clássicas, o poema se inicia com a proposição do assunto, expressa nas três primeiras estrofes do canto I. Vêm, depois, nas duas estrofes seguintes, a invocação das Tágides, as ninfas do rio Tejo, instadas a ajudar o poeta e a lhe proporcionar inspiração para seu canto. E, a seguir, ainda dentro do esquema tradicional dos poemas épicos clássicos, vem a dedicatória ao rei D. Sebastião, ao qual é oferecido o poema. São doze estrofes, de números 6 a 18, dirigidas ao rei, de quem se esperava fosse um guerreiro vitorioso contra as hostes maometanas que então ameaçavam a Cristandade europeia.

Na sequência, tem início a trama da epopeia, com a narrativa da viagem de Vasco da Gama, interrompida a certa altura quando, à maneira de um moderno flashback, é introduzido um longo relato de Vasco da Gama, recordando toda a História gloriosa de Portugal. Outros episódios também intercorrem, introduzindo no poema uma nota de variedade muito agradável ao leitor. Por exemplo, a descrição do concílio dos deuses no Olimpo, debatendo entre si sobre se deveriam ou não ajudar os portugueses em sua navegação (I, 20-41); o episódio dramático do gigante Adamastor (V, 41-59), a descrição igualmente dramática da tempestade (VI, 70-84), o episódio dos Doze de Inglaterra (VI, 43-69) e muitos mais.

Há em “Os Lusíadas” exemplos muito variados de estilos. Há elementos descritivos bem caracterizados, por exemplo, no relato de batalhas, como na de Aljubarrota, (IV, 28-31), de uma vivacidade extraordinária, em que o leitor tem a nítida impressão de estar assistindo a um filme, tal a força expressiva do poema.

Há trechos de lirismo comovedor, como, no final do canto III, o episódio de Inês de Castro, “a mísera e mesquinha / que depois de morta foi rainha”.

Há passagens que se destacam pela ironia e uma, pelo menos, em que o senso de humor é bem marcado, com o episódio de Veloso, no início do canto V. Esse Veloso era um português muito convencido, ao que parece, de sua valentia, muito seguro de si e um tanto fanfarrão. A certa altura, desceu de sua canoa junto à costa africana e afoitamente se pôs a subir um outeiro, mas, estando envolvido pela vegetação, não via que, no alto do mesmo outeiro, estava um grande número de negros com ares hostis. Os companheiros de Veloso, que estavam avistando perfeitamente o alto da colina, em altos brados, tentavam advertir Veloso do perigo, mas o valentão não ligava, pensando tratar-se de brincadeira dos amigos. Quando chegou ao alto da colina, porém, e se viu diante de tantos homens hostis, deu-se conta do perigo em que estava e desembalou em carreira até à praia, onde conseguiu embarcar na canoa, em meio a uma chuva de flechas... Veloso, descendo a colina, “... ao mar caminha, / Mais apressado do que fora, vinha”, ironiza o poema.

E prossegue: “Disse então a Veloso um companheiro / (Começando-se todos a sorrir): / – “Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro / É milhor de decer que de subir!” / “Si, é (responde o ousado aventureiro); / Mas, quando eu pera cá vi tantos vir / Daqueles cães, depressa um pouco vim, / Por me lembrar que estáveis cá sem mim.” (V, 35).

Há ainda, ao longo do poema, numerosos versos que, pela sua concisão e conteúdo de fundo moral, se transformaram em verdadeiros ditados, repetidos por muita gente que nem mesmo sabe que sua origem está nos Lusíadas. De memória, cito apenas três: “O fraco rei faz fraca a forte gente”; “inimiga não há, tão dura e fera, / Como a virtude falsa, da sincera”; e “... sempre por via irá direita / Quem do tempo oportuno se aproveita”.

O poema é, na forma, muito constante e regular, mas é cheio de variações que o tormam extremamente agradável de ser lido.

Camões foi, sem a menor sombra de dúvida, o maior expoente da língua portuguesa e contribuiu poderosamente para sua afirmação, assim como contribuiu para a afirmação da nacionalidade portuguesa e, por extensão, da brasileira. Papel análogo representou Dante, para o italiano moderno, Shakespeare para o inglês, Cervantes para o castelhano. Embora autores antigos e quase arcaicos, os quatro continuam sendo, e nunca deixarão de ser, referenciais para todos os estudiosos de seus idiomas. Esse o imenso valor das obras clássicas, sempre atuais porque nunca envelhecem - como sempre gosta de realçar meu ilustre amigo e mestre Ricardo da Costa.

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