21 de dezembro de 2024
ARTIGO

Heranças e herdeiros

Por André Salum |
| Tempo de leitura: 3 min

Nas relações familiares, quando se atinge certa idade e a perspectiva da morte torna-se mais próxima, aqueles que se preocupam com seus familiares e dependentes articulam ações a fim de os proverem de condições financeiras que lhes tragam segurança e estabilidade, após sua partida deste mundo. Considerando-se nossa condição atual e a do mundo em que vivemos, tal preocupação nos parece compreensível e aceitável. Também nos parece evidente que o valor dado aos laços consanguíneos nos restringe a concepção de fraternidade, pois não temos a mesma preocupação ou cuidado com os filhos alheios nem com aqueles desprovidos de meios de subsistência que não nos partilhem o convívio.

Outro aspecto digno de reflexão é a doação dos bens materiais que se possui apenas após a morte, pois é muito fácil doarmos algo quando não nos possa mais ser útil. Muito diversa é a condição de quem, ainda na plenitude de suas funções orgânicas e psíquicas, dedica parte significativa de seus bens e posses a quem, por escassez de recursos, deles possa se beneficiar.

Em nossa sociedade, predominantemente materialista e consumista, merece consideração a excessiva valorização dos bens e riquezas materiais em detrimento daqueles de natureza moral e espiritual. Muito frequentemente, os descendentes de quem haja morrido e deixado considerável patrimônio material, movidos por interesses mesquinhos e egoístas, iniciam disputas, as quais muitas vezes alcançam os tribunais, a fim de que a maior soma possível lhes seja destinada. Nesse processo, muitos familiares entram em conflitos, rompem vínculos afetivos, geram e alimentam mágoas, ódios e ressentimentos, comprometendo as relações e a qualidade de vida por conta de apegos e desejos egoístas. Quanto mais numerosos os bens e quanto maiores as posses deixadas, mais acirradas as disputas daqueles que ambicionam o patrimônio material alheio.

Além das referidas disputas, em muitos casos descendentes irresponsáveis dissipam riquezas que foram frutos de imenso suor dos antepassados, conquistadas com larga soma de tempo e trabalho árduo.

Sob uma perspectiva que inclua e valorize a dimensão espiritual da vida e do ser humano, caberia questionar-se, além de possíveis heranças materiais, sobre o legado moral deixado por alguém, pelos exemplos, valores e virtudes que lhe hajam enriquecido a existência, e sobre quanto dessa riqueza haja sido reconhecido e valorizado, multiplicado e compartilhado pelos que se fizeram beneficiários desse legado. Parece que ainda não aprendemos a dar o devido valor à riqueza espiritual de sabedoria e amor que nos tem sido doada, entretanto, aquele que, ao longo da vida, insculpe no caráter dos seus filhos e tutelados os valores essenciais do espírito, por palavras e sobretudo pelo exemplo, enriquece-os com um tesouro inalienável, que possuirão por toda a vida, indene à cobiça alheia e às incertezas do mundo. Além disso, habilitando-os para o trabalho digno e honesto, propicia-lhes as melhores condições de independência, pelo que podem prover a si mesmos, tanto quanto aos seus dependentes, do que seja necessário. Portanto, o legado mais importante que pode ser deixado a quem se ama é a educação de valores, através dos próprios exemplos, assegurando um futuro melhor, não apenas de quem se beneficia do trabalho e da generosidade alheios, mas de quem, expressando gratidão pelas riquezas interiores aprendidas, despertadas e cultivadas, edifica em si mesmo uma vida verdadeiramente rica de significado.

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