23 de novembro de 2024
ARTIGO

O professor e sua mais difícil lição

Por Juliana Previtalli |
| Tempo de leitura: 4 min

A Faculdade de Educação Física da USP — Universidade de São Paulo — formava sua primeira turma no ano de 1970. O ginásio do Ibirapuera emprestava as salas de aula, as piscinas, as quadras e a pista de atletismo aos primeiros graduandos. A turma, composta até por atletas olímpicos, trazia, entres eles, Luiz Cláudio Onofre Martins. Natural de Palestina, cidade próxima a São José do Rio Preto, no interior do estado, escolhera a grande São Paulo para realizar os estudos e para iniciar a vida profissional. Aprovado num concurso público, passou a dar aulas em escolas da cidade. Numa delas, no bairro Cidade Ademar, trabalhou por 9 anos e ajudou a incluir o xadrez na Olimpíada Estudantil da cidade de São Paulo. Os jogos provocavam grande movimentação e envolviam desde a Secretaria Municipal de Esportes até a de Cultura — escolhia-se, num concurso, a miss estudante e realizava-se, com grande estilo e pompa, um desfile de abertura pelas principais ruas do centro antigo da cidade.

Naquela época, em que ocorria o auge do consumo de cigarros no Brasil, Luiz Cláudio também fumava. Iniciara aos 14 anos, junto da irmã. Cresceram vendo o pai fumar. Não encontrou empecilho quando ingressou na faculdade. Um de seus mestres, no entanto, não permitia que se fumasse dentro da sala — alertava-os dos malefícios do cigarro —, voz solitária em meio à multidão, já que, na universidade, se permitia ingerir o cigarro até na sala dos professores, a maioria, fumantes. Como se vê, encontrava-se, com facilidade e sem muita fiscalização, local para fumar.

A epidemia de tabagismo acelerou-se, vertiginosamente, no Brasil a partir de 1970. Desse ano até 1986, segundo o Centro de Documentação do Ministério da Saúde, o número de cigarros vendidos no Brasil cresceu 132% num período em que a população adulta cresceu apenas 69% e o número de fumantes foi de 25 a 33 milhões — um crescimento de 32%. A informação, muito limitada, disponível na época sobre a prevalência de fumantes, consistia num inquérito realizado pela OPAS — Organização Pan Americana da Saúde. Em São Paulo, a única cidade brasileira investigada, a prevalência dos tabagistas assustava: 54% entre os homens e 20% entre as mulheres.

Em clubes paulistanos da elite, como o Paineiras do Morumbi e o Esporte Clube Sírio, Luiz Cláudio treinou adultos da equipe de voleibol. Competiam na 2ª divisão. O magistério, no entanto, fascinava-o. Ex-alunos montaram um grupo para treinar com o antigo professor, após sua última aula. Findo o treino, saíam para comer pizza, tomar café e fumar cigarros.

Aposentado, veio morar com a mãe em Piracicaba, no mesmo prédio onde também residia a irmã. Gostava de ler, sobretudo crônicas. Citou Fernando Bonassi, articulista da Folha de S. Paulo, de quem comprara todos os textos, e Fernando Sabino. Deste, enviou-me “A Última Crônica”, escrita cheia de lirismo e de poesia que me despertou a vontade de relatar sua jornada no enfrentamento ao tabagismo.

Apareceu, sozinho, num dos últimos dias “úteis” de dezembro de 2022. Incentivado pelo amigo Fábio de Moura, ex-procurador municipal, que fizera o tratamento comigo e parara de fumar, decidiu que, igualmente, largaria os cigarros. Pediu minha ajuda. Iniciamos os preparativos, prescrevi-lhe as medicações e, em seguida, veio o recesso do final do ano. Aplicado, na primeira oportunidade em Janeiro, lá estava ele. Preocupado, contou que fumara 4 cigarros na confraternização com a família na véspera de Natal — um lapso.

Por definição, lapso seria um deslize que pode não resultar em recaída. Esta seria o retorno ao consumo regular de cigarros, mesmo que em quantidades menores do que as anteriores à cessação. Aliás, esse tema merece uma consulta inteira para discutir sobre sua prevenção junto aos pacientes, já que, aos 6 meses, 70% das pessoas tratadas se encontrarão em situação de recaída, podendo atingir cerca de 80% aos 12 meses após o tratamento inicial. 

Os preditores indicativos de maiores riscos de recaída são o alto nível de dependência (consumo de 20 cigarros, ou mais, por dia, ou do primeiro cigarro em menos de 30 minutos após acordar); o início precoce de uso, antes dos 17 anos; a convivência com fumantes; a história de depressão e, finalmente, o abuso de álcool ou outras drogas.

Felizmente, Luiz Cláudio seguiu, à risca, todas as instruções e, hoje, encontra-se livre dos cigarros e cheio de orgulho, de gratidão e de vontade de viver.

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