21 de dezembro de 2024
ARTIGO

Cristo Redentor: Preto e imponente

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Recolhi, solidário, na memória, as poucas mas doídas lágrimas derramadas por Vini Jr., no estádio em que seu time, o Real Madrid, participava, na Espanha, com o Valencia.

Pude ver e sentir, pela televisão, “como um homem treme. / Como chora um homem!” Ferido, não deixou por menos.

Viril, humano, chorou, gesto altruísta e heroico. Em pé diante do agressor, identificando-o, afirmou viver num país, lindo e acolhedor, com parcela da população que não hesita em revelar e exportar esta funesta e desventurosa imagem.

Não só a Espanha se revela assim. Inúmeros países no mundo, dentre eles, o Brasil, olha o indivíduo e reconhece nele, não seu caráter, a grandeza de seu espírito, sua dignidade, mas a cor de sua pele. A onda de intolerância, de deseducação, de desrespeito denuncia desumana presença do homem, no planeta, distante do sonho de Martin Luther King.

“Zangado / acreditas no insulto / e chamas-me negro. / Mas não me chames negro. / Assim não te odeio. / Porque se me chamas negro / Encolho os meus elásticos ombros / e com pena de ti, sorrio.”

O poeta moçambicano, primeiro escritor africano a ganhar o prêmio Camões, um dos líderes da libertação de Moçambique, numa obra reveladora do sofrimento e dor imposta pelo colonizador, dá, no poema acima, resposta à injúria recebida ao longo da vida.

Quando morreu Zé Craveirinha, Vinícius Júnior tinha três anos. Aos vinte e três, passados vinte da morte do poeta, obrigado a sentir o peso da ultrajante ofensa e, cansado de insistente desrespeito, provocado por povo que não é seu e onde trabalha, oferece seu talento, suas habilidades, seu dom, levanta sua voz e brada ao mundo, não por socorro, por consciência.

Ele, um dos maiores jogadores da atualidade, entre tantos, no mundo, não hesita em denunciar uma vez mais este comportamento hostil dos poderosos e seu povo que, com eles, aprende.

Até quando estes que se supõem donos do mundo, impudentes, maus, capazes de assentarem-se em bancos de igreja acreditando-se perdoados por vagas e hipócritas orações, derramadas pelos lábios, não sentirão latejar de vergonha e culpa sua própria consciência?

“Eu sou carvão; / tenho que arder na exploração / arder até às cinzas da maldição / arder vivo como alcatrão, meu irmão, / até não ser mais a tua mina, patrão.”

Por isto se apagaram as luzes do Cristo do Corcovado e ele enegreceu. Na cor escolhida, fez-se igual à grande maioria do povo brasileiro e parcela significativa da humanidade. Juntou-se a estes provando que uns não podem, jamais, tentar submeter-se a outros, tendo por base, a cor de sua pele. Com este gesto e sem cor alguma na noite imensa, ensinava que só Ele permanece Caminho, Verdade e Vida.

Interessante observar como se deslumbram os humanos, diante da imagem do Corcovado que sugere o Cristo ascendido ao céu, para, em seguida, ter, na terra, comportamento contraditório, injurioso e inóspito. De que vale afirmar horror ao racismo?

É preciso ser antirracista, sem esquecer jamais que por trás de governos exageradamente autoritários, repousando em comportamentos ditatoriais, há, sem nenhuma dúvida, capa de horror assombrando os pobres negros.

Nossa Mãe África é Mãe solteira. Fez-se sozinha. Foi explorada em sua riqueza. Submeteram-na e a submetem à usurpação de suas riquezas e tratamento vil. Ignoram a bondade latente de seu povo e se aproveitam da riqueza do continente, de seus bens, sem oferecer nada em troca, a não ser miséria e dor. Há evidência maior que a miséria a que está entregue a grande maioria dos negros na África e no mundo, para confirmar a impossibilidade do perdão?

Mia Couto, um dos mais premiados escritores em língua portuguesa, também moçambicano, mundialmente conhecido, em especial no Brasil, em voz baixa, quase em silêncio, grita e denuncia este falso e politicamente correto comportamento capaz de criar a ilusão salvacionista em relação à África.

Este escultor de palavras, no Brasil, explicou, ao passar por aqui, que nossas histórias devem ocupar um espaço de resistência. A sociedade deve ir além do estreito estereótipo de raça para ser capaz de respeitar cada indivíduo e, no gesto e na voz, provar não ser contra o racismo, mas antirracista.

Se não entende o que é ser racista, pense nisto: o ser humano escondido em palavras quando nega ser racista, saberá enxergar no outro seu caráter, seu comportamento honesto e adequado, sem ter sob seu olhar apenas cor?

Racista é quem, antes mesmo de pensar no indivíduo que a pele esconde, vê sua cor, porque não deseja reconhecer nem respeitar a mão que estende, o sorriso que oferece e a porção divina recebida.

O racismo olha a raça para não ver a pessoa, sem reconhecer a história que traz em si, escrita muito antes de sua identidade racial. Não é a raça que produz o racismo, é o racismo que produz a raça.

Por vezes, a resposta que damos ao preconceito é fundada na raça. As políticas sociais afirmativas, por exemplo. Dentre elas, as cotas. Ninguém deveria ser contra. É pecado antigo que vai custar muito a ser reparado. E será?  Só se posiciona contra este gesto político aquele que desconhece o grande crime do racismo ao anular, em nome da raça, o indivíduo.

Enquanto refletimos, sejamos ao menos Vinícius Júnior, Tina Tuner, Elza Soares e os anônimos que, dia a dia, recebem no olhar e no gesto injúrias, atitudes de desrespeito que humilham e ferem.

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