21 de dezembro de 2024
ARTIGO

Otto, “amigo, irmão de fé, camarada”

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Prometo-me a mim mesmo e não consigo cumprir. Prometo-me nunca mais escrever à chegada da morte de pessoas queridas ou de personalidades exemplares de nossos tempos. Pois, eu detesto, odeio a morte. Ela é minha maior inimiga – inimiga de tudo e de todos que pulsam e vivem. E, portanto, não devo e não quero ter qualquer proximidade com ela.

Heidegger entendeu o homem como “ser para a morte”. Por amarga seja, é a verdade indiscutível. Mas por que teve, ele, de ficar filosofando sobre isso, perdendo tempo em dar espaço para inimigo tão feroz? Por isso, prometo-me sempre – e sei que não cumpro – cometer essa idiotice de comentar sobre a morte. Pois – enquanto, teimosamente, continuo por aqui – essas gentes morrem, vão-se embora.

Lá se foi, há alguns dias, a nossa Rita Lee. E, agora – tão perto de nós – também lá se vai o Otto! O mil vezes doutor, educador, professor emérito da USP, mestre, cientista – e um milhão de vezes meu amigo! – Otto Jesu Crocomo! Otto se foi e nem sequer pude voltar a agradecer-lhe pelo referencial que ele foi em minha vida pessoal. Em Otto Crocomo, vi o testemunho vivo e cotidiano de fé e estudos, ciência e religião podem não apenas se encontrarem, mas completarem-se. E eu não acreditava nisso.

Otto Crocomo estava entre os pioneiros criadores do CENA, o universo nuclear da agricultura na América Latina. Não foi apenas o Brasil – mas a ciência mundial – que conheceu, muito rapidamente, a vocação científica do jovem assistente de outro monumento da ESALQ, Eurípedes Malavolta. Mas a mim não me cabe – nem por pretensão imensa – discorrer sobre a excelência de Otto Crocomo na condição de cientista. A mim, coube-me o privilégio de ser amigo de Otto Jesu Crocomo.

Aos meus 22 anos, a ousadia temerária de uma comunidade de empresários piracicabanos tornou-me diretor de um novo jornal, a “Folha de Piracicaba”. Nem quero me lembrar dos desafios daquela verdadeira aventura. Refiro-me ao ocorrido por a “Folha” ter-se localizado na rua Rangel Pestana, bem ao lado da residência da família Crocomo, do patriarca João. E, de quando em quando, o seu oitavo filho, o doutor Otto, ia visitá-los, já com os frutos de sua notoriedade no exterior.

Foi quando nos encontramos pessoalmente. De maneira protocolar. Então, aconteceu de eu ter publicado o meu primeiro romance, “Um eunuco para Ester”. O tema repercutiu, em 1965, como escândalo abominável. Fiquei, ainda inexperiente, num incrível fogo cruzado de elogios e de repúdios. Em meio àquela batalha, eis que recebi uma carta analisando o livro favorável e assertivamente: era a crítica do cientista Otto Jesu Crocomo. E, nela, o já doutor esbanjava um cabedal extraordinário de cultura também humanística. Era o Otto humanista cristão manifestando-se. E com quê universalidade cultural!

Algo, porém, me incomodava. E muito. Como era possível aquele cientista extraordinário ser, ao mesmo tempo, um homem de religiosidade tão profunda? Este escriba carregava, então, resquícios da experiência política na militância da juventude comunista. A religião tinha que ser, pois, “o ópio do povo”. Quando caí do cavalo, lá estava Otto Jesu Crocomo para ajudar-me a aceitar o incompreensível. Por cerca de 20 anos, trabalhamos juntos em movimentos da Igreja Católica. Ele foi o meu referencial humano da integral possibilidade de ciência e religião, razão e fé fortalecerem-se mutuamente.

Otto Jesu Crocomo, meu “amigo, irmão de fé, camarada”. Até um próximo encontro. Para, talvez, sabermos quantos anjos cabem na cabeça de um agulha...

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