Duzentas pessoas tiveram o privilégio de assistir na sede da ACIPI, no último sábado, a apresentação da lindíssima ópera “Isaura”, composta aos 94 anos de idade pelo nosso admirável amigo Maestro Ernst Mahle, com libreto do também amigo Dr. Marcelo Batuíra, diretor do Jornal de Piracicaba.
Dizem os psicólogos que a capacidade criativa do ser humano vai crescendo e atinge sua plenitude por volta dos 40 anos de idade. A partir daí, entretanto, ela não diminui, mas se mantém estável. O físico envelhece e apresenta sinais de cansaço, mas a mente continua viva e ativa, dando o melhor de si. É por isso que com frequência vemos, na mais avançada idade, literatos ou artistas produzirem obras primas. O Maestro Ernst Mahle é exemplo dessa espantosa criatividade. Nem bem lançou essa ópera e já está anunciando uma próxima, novamente com libreto de Marcelo Batuíra, tendo como tema o romance “Inocência”, do Visconde de Taunay.
“Isaura” foi a quarta opera composta pelo maestro alemão que há 70 anos fundou, em companhia de sua esposa, a piracicabana Maestrina Cidinha Mahle, a Escola de Música de Piracicaba, que mais tarde foi cedida, pelo casal, à UNIMEP. A apresentação foi comemorativa dos 70 anos de fundação da “Escola de Música de Piracicaba Maestro Ernst Mahle” - nome atual da escola que constitui a justo título um dos orgulhos da nossa cidade.
Contou-me D. Cidinha que seu marido compôs a ópera durante a forçada reclusão a que precisou se submeter por causa da pandemia do vírus Covid, que a partir da China se espalhou por todo o planeta. Como em suas outras óperas, Mahle quis também desta vez desenvolver o enredo de uma obra da literatura brasileira, assunto que o fascinou desde 1951, quando sua família se transferiu da Alemanha para o Brasil, onde prosseguiu e ampliou o trabalho que desde o início do século os Mahle já desenvolviam no ramo automobilístico.
Embora proveniente de uma família composta por engenheiros e professores, e embora tenha herdado por natureza talento e gosto para a mecânica, o jovem Ernst sentiu desde logo que sua verdadeira vocação era a música. E à música se dedicou para alegria dos seus numerosos admiradores e para a gratidão da cidade de Piracicaba, onde se estabeleceu juntamente com sua esposa, também musicista talentosa.
O argumento da ópera é extraído do romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães. Obra típica do romantismo brasileiro, inserida no contexto da campanha abolicionista que apaixonava os espíritos nas últimas décadas do reinado de D. Pedro II. Isaura é uma jovem, filha de pai branco e português e de uma escrava, que foi educada primorosamente pela família de seus senhores, mas nunca deixou de ser escrava, muito embora sua aparência e sua educação fossem em tudo e por tudo as de uma típica sinhazinha branca, filha de ricos fazendeiros. Nessa duplicidade contraditória reside o início do drama pessoal de Isaura, que tem que lutar contra as investidas de um senhor licencioso e degenerado e contra os ciúmes da esposa deste.
A abolição da escravatura, em 1888, ficou incompleta. Há quem acuse injustamente a Princesa Isabel de se ter desinteressado pela sorte dos escravos após a promulgação da Lei Áurea. Na verdade, a Princesa pretendia, quando subisse ao trono, desenvolver um amplo projeto de integração condigna dos antigos escravos na sociedade e na vida econômica do país. Existe documentação muito esclarecedora, a esse respeito. A própria vinda, para o Brasil, dos missionários salesianos de Dom Bosco se inseria nesse projeto. A Princesa se correspondia com São João Bosco, o grande idealizador do ensino profissionalizante, que era então uma novidade na Europa, que enfrentava graves problemas sociais, em decorrência do fato de numerosos camponeses saírem de seus ambientes de origem para irem trabalhar nas fábricas, onde constituíam o proletariado urbano sem perspectivas de melhoria de condições. A Princesa ajudou a vinda para o Brasil dos primeiros salesianos, porque via no ensino profissionalizante um dos caminhos para o resgate da dívida histórica do Brasil em relação aos antigos escravos e seus descendentes. O projeto isabelino, infelizmente, foi abortado pelo golpe republicano de Deodoro. Foi o novo regime que esqueceu e abandonou os antigos escravos.
Retornemos ao Maestro Mahle. Compor uma ópera não é nada fácil. Seu compositor deve dominar muitos estilos, porque uma ópera tem, necessariamente, partes que se inserem em vários gêneros musicais: marchas, ouvertures, coros, danças, recitativos, árias, diálogos cantados etc. O nome ópera provém do italiano e significa simplesmente obra, no singular. Mas sempre preferi ver a origem da palavra não no italiano, mas no latim, no qual “opera” é a forma plural do substantivo “opus”. O nome ópera tem, segundo sempre pensei em minha etimologia caseira, sentido necessariamente plural, porque seu autor não compõe uma única obra, mas na realidade compõe uma pluralidade de obras e as reúne todas numa única apresentação.
Sei que essa minha etimologia é bastante forçada e um tanto discutível, mas é assim que a entendo. E creio que tenho alguma razão.
--------------
Os artigos publicados no Jornal de Piracicaba não refletem, necessariamente, a opinião do veículo. Os textos são de responsabilidade de seus respectivos autores.