25 de dezembro de 2024

Ao cair da tarde

Por Marisa Bueloni |
| Tempo de leitura: 3 min

Eis a hora fatal. Abro a janela da sala, baixa, que dá para um pequeno jardim. Por ali entra uma brisa suave, que faz estremecer a delicada folhagem no vaso sobre o centro da mesa de jantar. Aprendi com minha sogra a usar plantas em cachepôs. Esta de que vos escrevo é a chamada “jibóia”, que vai aumentando muito. De um lugar alto, se derrama, as hastes finas e as folhas caindo graciosamente.
        Ao cair da tarde, vou até a janela da sala para espiar a beleza do sol lá fora, dourando as calçadas e o casario do lugar onde moro. Há graça em toda parte, um pequenino recanto de sonho que escolhi para morar. Aqui, tenho buscado a paz que sonhei um dia.
        Um amigo querido me conta da sua luta para poder dormir. Mora no centro e ouve buzinas, alarmes, conversas, vozerio.  Outro me informa que está se mudando do apartamento, não aguenta mais os latidos do cão vizinho. Uma amiga se mudou para o campo (eu fiz isso e me iludi), julgando ter encontrado seu paraíso perdido. Não para de ouvir um som alto que perturba muito. Nos finais de semana a coisa piora e ela vem para a cidade dormir na casa da mãe.
        Isso me faz lembrar meu lindo. Havia um bar próximo da nossa chácara. Era aquele tum-tum-tum surdo boa parte do tempo.  Aos sábados o baile era audível, com as risadas e tudo. E ele queria ir dormir num hotel na cidade, passar a noite apenas. Nunca fomos, aguentávamos. Lá pelas três da madrugada, o som diminuía bem.
        Naquele tempo eu não conhecia o protetor auricular de silicone (chamo de “plug de ouvido”). Não sei se ele teria usado, mas é a salvação da lavoura, quando necessário. Não salva de uma vez, mas ajuda. E tem de se acostumar com ele.
        A tarde cai e me faz lembrar tanta coisa. De um tempo que não volta mais. Dos amigos queridos indo embora, um a um, nesta inexorável fila da vida. Vida que tento celebrar em cada texto. Vida e morte, puro mistério, até quando vamos nos deparar com este abismo dentro de nós?
        Ao cair da tarde, minha alma quer levitar, porque já vi o Anjo por perto. Nunca mais fiz um poema cafajeste. Uma vez, escrevi um, e ele perguntou se eu não tinha vergonha. Respondi que o poema era cafajeste; eu não. Ele tocou meu cabelo de leve e saiu. Senti um arrepio mortal.
        Mas aqui estou, ao cair da tarde. Escrevo com o peito em chamas, algo vai acontecer. Já sonhei com isso e evito tocar no assunto. Trata-se de uma profecia, uma sentença de grande impacto. Mas não adianta propagar, ninguém liga. Estamos todos imersos neste mundo de tecnologias hipnotizantes e não podemos voltar atrás. Irreversível processo da comunicação velocíssima, ao sabor da modernidade e dos desejos ocultos dos corações.
        Ao cair da tarde, já fiz tanta coisa. Se coloquei a roupinha na máquina de manhã e pendurei, já é hora de recolher e guardar. O perfume do sol é uma bênção. Talvez um lanchinho, um suco, um café com bolachinha? Uma fruta, uma fruta boa e doce como o caqui. Gosto de mamão, melão, abacaxi, maçã. E a que preço as compramos agora!
        A manga é um capítulo à parte. Um pé de mangas é uma bênção dos céus. Toda fruta é. Mas a mangueira é frondosa e dá para fazer um balanço de cordas nos seus galhos altos. E deixar a vida oscilar num trapézio feito de graça e bondade.
        Ver o pôr-do-sol pelas folhas da mangueira é um momento de profundo louvor divino. O céu nos cumprimenta e se despede de nós, até amanhã Terra bendita. O Criador nos dará as estrelas. E os humanos contemplam os astros, indiferentes a esta grandeza.
         A tarde cai e a brisa da janela levanta a toalha bordada sobre a mesa de jantar. Há tanta graça no movimento encantador. Ah, brisas do mundo! Ao cair da tarde, vos saúdo, brisas do mundo. Ao cair da tarde, junho me abraça e retribuo com um beijo.

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