23 de julho de 2025
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ESPECIAL

O monge, a pomba e a peste

Por Hélcio Costa |
| Tempo de leitura: 2 min

Revi outro dia, por acaso, uma das fotografias que mais atraiu a minha atenção em meu ensaio silencioso para me tornar jornalista, décadas atrás: a de um monge budista envolto em chamas, em Saigon. A foto, de Malcom Browne, ganhou os dois principais prêmios de fotografia no ano de 1963: o Pulitzer e o World Press. Ela mostra a autoimolação do monge Tchíc Quang Dúrc, em protesto contra a perseguição aos budistas pelo governo do Vietnã do Sul. Relatos dão conta que Tchíc não gemeu, nem gritou. Ateou fogo às vestes embebidas em gasolina e, sentado no chão na posição de lótus, ardeu por 10 minutos, até cair de costas no asfalto em tarde de junho. As razões do auto-sacrifício? Esse tema deixo para os doutores da fé, da mente e da alma. Mas elas, quaisquer que tenham sido, sempre colocaram em xeque a minha compreensão cartesiana.

Imagens retratam épocas e ajudam a contar a história.

Que imagem retrata melhor a luta pela redemocratização do Brasil que a de uma pomba branca, pousada em uma faixa pela anistia, na Praça da Sé, registrada por Jorge Araújo e estampada na capa da "Folha" na edição de 22 de agosto de 1979? Um apelo à paz em um Brasil, naquele ano, tão conturbado. Ainda um Ano de Chumbo.

E hoje, que imagem retrata de forma mais fidedigna o Brasil no momento em que o país supera a marca de 400 mil mortes causadas pela covid-19? Me vem à mente a imagem, captada de cima, de dezenas de covas rasas abertas, lado a lado, no cemitério, esperando, em silêncio, a chegada de dezenas e dezenas de corpos. O local? O autor? Uma simples busca na memória e no Google revela algo assombroso: os locais são muitos; os autores, vários (Nelson Almeida, Eduardo Anizelli, Leonardo Finotti, Paulo Whitaker ...). A imagem revela a tragédia que vivemos hoje. E, pior, revela a banalização dessa tragédia. Nas imagens, o Brasil surge imolando a sua gente, não pelo fogo, mas pela peste, em um dos momentos mais tristes de nossa história.

Hoje somos 400 mil mortos. Até quando, em silêncio, vamos arder em praça pública?.