26 de dezembro de 2024
Izaias Santana

A pandemia e as falsas dicotomias

Por Izaias Santana, doutor em Direito Constitucional, professor da Univap e prefeito em Jacareí |
| Tempo de leitura: 4 min
Izaias Santana

O enfretamento da pandemia escancarou falsos dilemas existentes na política e na gestão pública. São categorias que põem em lados opostos, quase irreconciliáveis, grupos alimentados por argumentos e pontos de vista aparentemente contraditórios, mas, na verdade, complementares. Os dilemas clássicos:  técnico x político; poder central x poder regional e local; público x privado; legal x discricionário. São categorias utilizadas, normalmente, para separar atividades e funções que devem sempre ser complementares, não excludentes.

O argumento “técnico” – como sinônimo do correto, do refletido, do analisado – como oposto ao político – este visto como o de conveniência, de oportunismo, de improvisação ou, até, de interesses ilegítimos –, foi a dicotomia mais utilizada. É claro que há diferença entre a visão técnica e a política, mas apenas de foco. Enquanto o técnico enxerga sua área de conhecimento, com análise aprofundada do assunto, o político olha para o entorno, para as demais áreas atingidas, para os efeitos.  O técnico pode e deve ser específico, mas o político, mesmo sendo específico, precisa ser genérico, para compreender todo o fenômeno.

Mesmo que reconheçamos a primazia dos profissionais da saúde, em todas as suas áreas, na definição das medidas de enfrentamento, não podemos ignorar o comportamento humano, os deslocamentos tradicionais, a diversidade das atividades, comércio, indústrias, o efeito de determinados setores na economia, nos serviços essenciais. Não podemos desprezar o grau de adesão da população. A conscientização da real necessidade da medida adotada. Enfim, enquanto os profissionais da saúde apontavam as medidas para combater o vírus, o político se preocupava, essencialmente, com a sustentabilidade das medidas e com seus efeitos colaterais.

Os comitês de enfretamento da pandemia ganharam em eficácia, quanto mais ampla foi sua configuração. E suas recomendações deveriam, sim, ser objeto de deliberação política, do saber político, da ciência política.

As intervenções públicas numa Federação devem observar o arranjo institucional definido na Constituição, a partir da separação clássica das funções (legislar, executar e julgar), e a repartição vertical das atribuições em função do nível de organização do serviço (federal, estadual e municipal). O Sistema Único de Saúde, com seu arranjo constitucionalizado com duas leis da década de 90, organizando sua gestão, até então não tinha passado por um teste como o do enfrentamento à pandemia.

Incialmente, o Governo Federal editou uma lei prevendo todas as medidas e delegando ao Ministro da Saúde a adoção específica de tais medidas. Este delegou aos Secretários Estaduais e/ou Municipais de Saúde, tudo dentro do modelo de gestão do SUS. Todavia, quando algumas medidas adotadas pelos Estados desagradaram ao Presidente e a alguns Prefeitos – notadamente as medidas adotadas no Estado de São Paulo –, estes buscaram o Poder Judiciário para questionar a competência para a prática de tal ato.

As decisões dos Tribunais, ao final, só confirmaram o arranjo constitucional e legal. As resistências se deram mais ao perfil dos ocupantes das Chefias do Executivo. Excesso de protagonismo, vaidades e visões equivocadas da política e das competências.

Há uma pretensão de completude do ordenamento jurídico voltado ao setor público, como se o legislador fosse onisciente e capaz de prever com antecipação todas as situações concretas de intervenção do Poder Público nos negócios públicos e privados. O clássico princípio da legalidade é liberdade de ação, na ausência de norma, para o setor privado e vedação de ação, para o setor público. Em nome desta “pretensão de completude” nas últimas décadas se construiu na doutrina e jurisprudência um “aniquilamento” da discricionariedade administrativa, liberdade de ação na ausência de norma específica, porém em conformidade com o direito. As situações concretas enfrentadas na pandemia exigiram o reconhecimento de uma amplitude da discricionariedade, inclusive para atingir interesses individuais. Como poderia o legislador antecipar todas as medidas e graus de intervenção (isolamento, fechamento de comércio e atividades não essenciais, horário de funcionamentos dessas atividades...)? São medidas que, previstas em lei, devem conter um grau de liberdade de conformidade ao andamento da pandemia.

O argumento “privado” é comumente utilizado como sinônimo de qualidade, de excelência, de eficiência, de celeridade, de economicidade, em oposição ao “político”, este rotulado como todas as “não virtudes”. A campanha de vacinação, a oferta de leitos de UTI, a criação de hospitais de retaguarda e de campanha, em tempo recorde, demonstraram que o serviço público pode ser equiparado e até superar o serviço privado. A pandemia também evidencia que o setor privado não pode mais ficar restrito à saúde curativa, cuidados clínicos e hospitalares, mas deve “complementar” a saúde pública nas ações e serviços de prevenção e proteção.

Enfim, todas essas dicotomias servem para categorizar, classificar, tipificar as ações do Poder Público, mas não para definir com exclusividade as ferramentas de gestão. Em situação pandêmica, todas as ferramentas devem estar à disposição do gestor público. Esperamos que os Tribunais, ao analisarem os negócios firmados, não se esqueçam da excepcionalidade do período.