06 de dezembro de 2025
CRÔNICA

Biblioteca mouca de orelhas de livro? Que Deus me livro e guarde

Por Guilhermo Codazzi | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 3 min
Editor-chefe de OVALE
Patrick Tomasso/Unsplash

Livro.
Há quem diga que a vida é um livro aberto.
Outros, porém, certamente estão mais para livros esquecidos, seja em estantes empoeiradas ou adormecidos em gavetas avelhentadas, apinhadas de vazios profundos.

Há quem queime todos os dias mil Bibliotecas de Alexandria.

Pois é, Deus me livre. Ou melhor, Deus me livro.

Me livro, vez ou outra, cogitabundo, de exemplares mofados que, como folhas amarelas de outono, precipitam-se em direção à obsolescência desta biblioteca que carrego no peito.

Livros físicos, hoje, tenho poucos. Noventa e cinco por cento do que tinha, doei. Ao lado de voluntários, criamos três bibliotecas comunitárias com milhares de exemplares, voltadas para pessoas em situação de rua e que lutam contra a dependência química. Em resumo, leitores que têm a oportunidade de reescrever a própria história.

Uma delas tem o nome do meu avô paterno, Doutor Hélcio, que era dono da biblioteca onde eu me refugiava, quando menino. Foi lá, por sinal, que lancei o meu primeiro livro: Cartas Perdidas em um Mar de Palavras, há 10 anos.

Como escritor, tenho dois livros publicados, além de outros cinco títulos escritos na cabeça e no coração, à espera de serem colhidos ao pé da letra, da letra impressa no papel.

Tudo ao seu tempo. Falando nele, é curiosa a experiência de reler os livros que você escreveu, anos mais tarde, no cruzamento entre ontem e hoje. Há momentos em que você se reconhece no espelho das páginas. Em outros, porém, ocorre o oposto, aquelas palavras parecem ter sido escritas por outra pessoa, a pessoa que você era anos atrás.

Lembro-me de ir a uma escola, certa vez, conhecer a experiência de alunos do 1º e 2° ano primário que usavam meus livros nas aulas. A criançada transformava os poemas em desenhos, o que me permitiu ver o meu mundo pelo ponto de vista dessa turminha de 7 e 8 anos. Neste dia, em uma das salas, a turma escolheu um poema que eu sequer me lembrava de tê-lo escrito. intitulado "A pipa e o céu".

Ele começava com uma pergunta: "Quantos anjos tem o céu?". Ainda não sei e nunca saberei a resposta, mas reler aqueles versos, pelo caleidoscópio infantil daquela garotada, ludicamente, pintou a tal da pipa com uma profusão de cores, colorações que eu nem sequer conhecia. Essa turminha é ou não é uma boa semente para o amanhã?

Uma semente capaz de ressignificar o fruto das palavras -- o que se mostra muito apropriado, já que a palavra livro deriva de liber, do latim, que significa "entrecasca das árvores", membrana vegetal sob a casca de certas árvores que servia como suporte para a escrita, nos tempos ancestrais. Nos tempos atuais, de redes sociais, há quem julgue o livro pela capa e há quem valorize só a capa (ou a casca) mesmo.

Nesta última semana, viralizou a postagem da ex-BBB Rafa Kalimann: "Viemos na livraria comprar livros decorativos para casa. Eu surto com esse rolê", disse ela no Instagram. Foram investidos R$ 10 mil em livros decorativos. Depois da repercussão negativa, Rafa voltou às redes e justificou que vários dos livros que havia comprado são de culinária, citando a obra "Francis Bacon: A beleza da carne”, que, obviamente, não trata de gastronomia.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), autor do livro "As veias abertas da América Latina", já vaticinava: "Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus".

Biblioteca mouca de orelhas de livro? Que Deus me livro e guarde.