06 de dezembro de 2025
CRIME ORGANIZADO

Cartilha do PCC: o que diz o 'novo testamento' da facção

Por Guilhermo Codazzi | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 4 min
Editor-chefe de OVALE
Imagem de capa do livro 'A irmandade do crime', de Carlos Amorim

Dia 12 de maio de 2006, sexta-feira.
Toque de recolher, rebeliões em 74 presídios e 564 mortes.
Na véspera do Dia das Mães, a mãe de todos os ataques do crime organizado contra o Estado.

O PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa criada no Vale do Paraíba, declara guerra às forças de segurança pública, um dia depois da transferência de 765 presos para Presidente Venceslau, unidade de segurança máxima no interior paulista. A transferência é motivada pela descoberta de um plano de resgate de presos, incluindo Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC, que seria deflagrado no Dia das Mães.

Entre os dias 12 e 20 de maio, São Paulo transforma-se em um campo de guerra. A onda de ataques do crime, seguida de um contra-ataque das forças policiais, deixou o saldo de 564 mortos e 110 feridos.

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Um ano depois, em 2007, o PCC reorganizava as peças no tabuleiro do crime e lançava as bases de seu projeto de expansão.

A influência política estava entre as metas da organização, criada em 31 de agosto de 1993, no "Piranhão", o pavilhão anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté -- definido pelos presos, no estatuto de nascimento da facção, como "fábrica de monstros" e "campo de concentração". O PCC teria candidatos?

Esta era a pauta que eu, repórter investigativo, apurava naquele período. E havia uma pista. A investigação me levou a uma fonte, que disputaria a eleição em 2008, buscando uma vaga no Poder Legislativo, em um município da região, contando com o apoio da organização criminosa. O pré-candidato a vereador topou falar, desde que tivesse a sua identidade e localidade preservadas.

Após confirmar o elo entre o aspirante a político e a organização, fui ao lado de um repórter fotográfico ao encontro da fonte -- o local escolhido por ela era uma loja de celulares, aparentemente de fachada. O nosso objetivo era, por meio do trabalho jornalístico, revelar a mudança de estratégia do PCC pós-2006, com a ramificação do grupo e sua intenção de se infiltrar no poder político.

A fonte nos levou até um pequeno escritório nos fundos da loja. Lá, contrariando a posição inicial, o pré-candidato disse que não poderia mais falar sobre a meta da facção apoiar candidaturas. No jargão jornalístico, a pauta caiu.

Enquanto tentava, sem sucesso, convencê-lo a mudar de ideia, frustrado com a mudança repentina da entrevista, vi um livreto sobre a mesa do escritório. A ilustração da capa chamou a minha atenção: mostrava uma família e uma pomba, abaixo do título: 'Cartilha de conscientização, união e família - Para uma Geração Consciente'.  "E esse livro, o que é?", questionei.

A fonte respondeu que o livreto havia acabado de sair e era uma cartilha do PCC, destinada a seus integrantes e 'simpatizantes', que trazia a doutrina da facção, o seu código de conduta.

Diante do tema, de interesse jornalístico, perguntei se poderia levá-la para tirar uma cópia do livreto. "Não sai dessa sala", respondeu a fonte, que em seguida complementou: "mas pode ler se você quiser".

Não tive dúvida: munido de caneta e bloquinho, por algumas horas, copiei a cartilha à mão, ipsis litteris, da primeira à última página, ao longo de duas ou três horas.

 Ao final, o repórter fotográfico perguntou se poderia fazer uma foto da fonte, dizendo que ela não precisaria se preocupar, que não seria identificada na imagem. E a fonte respondeu: 'Quem precisaria se preocupar são vocês, não eu". Obviamente, deixamos a ideia da foto para trás.

Com as informações em mãos, ouvindo também as forças de segurança, o tema se transformou em uma reportagem especial, manchete da capa do jornal, denunciando o ambicioso projeto de poder do PCC. Uma semana mais tarde, um promotor telefonou e contou que uma cópia da cartilha havia sido apreendida em uma unidade prisional.

Entre outros pontos, a cartilha pregava a expansão do PCC para todo o Brasil, o monitoramento de autoridades a meta e o objetivo de que a massa carcerária tivesse direito a voto, entre outros pontos sensíveis, como a lista "daqueles que prejudicam a organização".

“Acompanhem as trocas dos cargos políticos: quem são essas autoridades, governos, secretários de segurança, administração penitenciário. Fiquem sempre atentos à política deles, pois são essas as pessoas diretamente responsáveis pelo sistema penitenciário”, diz trecho da cartilha. “Exponham nossas dificuldades e com isso conquistaremos nossos direitos como presos usando as mesmas armas que eles usam contra nós”, aponta outro trecho.

Ainda hoje, a versão atualizada da cartilha é uma peça importante na estrutura do PCC, sendo apresentado pelos líderes aos integrantes e por eles aos familiares. 
"O 'sintonia' deve lembrar que cada um deve ler, analisar, e discutir a Cartilha, para que haja uma constante evolução do entendimento e a disseminação aconteça dentro e fora de cada unidade prisional em todos os estados brasileiros e nos países onde a facção esteja presente", diz a cartilha do PCC.

Nota de redação: Agora, o ano é 2025.
Um relatório divulgado pelo Ministério Público de São Paulo aponta a presença de integrantes do PCC em ao menos 28 países, além da atuação disseminada pelo Brasil. Um ano antes, investigações do MP e da polícia revelaram que criminosos financiaram campanhas eleitorais de políticos em troca da facilitação em fraudes em licitações. Já estava tudo lá, desde 2007, em letras garrafais de manchete de jornal.