25 de dezembro de 2024
OPINIÃO

Uma luz na solidão da noite

Por João Júlio da Silva | Jornalista em São José dos Campos
| Tempo de leitura: 7 min


Finalmente a noite tão esperada por tantas pessoas chegara, não para ele, que detestava aquela data. Todo ano era a mesma sensação de vazio, uma angústia inexplicável, mas sentida como algo que dilacera até a alma. E dessa vez, o impacto era bem mais dolorido, pois a solidão estava impregnada em sua existência. Mas, depois de tudo o que ocorrera naquela noite, com certeza, sua vida não poderia ser mais a mesma.

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Estava só, com olhar perdido em sombras na imensidão daquela casa, uma mansão que conseguiu adquirir depois de tantos anos de trabalho e bons negócios. Tinha muitos outros bens, pois era um homem rico. Nada veio de herança, mas de muitos anos de dedicação na construtora que um dia decidiu abrir com a cara e a coragem.

Apesar da riqueza adquirida, não era apegado aos bens materiais, estava sempre disposto a ajudar os mais necessitados. Vivia com muito conforto, mas era um homem sinceramente bem intencionado.

Mas, se obteve sucesso profissional, o mesmo não ocorreu no amor. Havia se separado da mulher há um ano, mais ou menos, e desde então, optou pela solidão, não queria se arriscar em um novo relacionamento como aquele. Aprendeu muito com os vinte e cinco anos de casamento e não queria viver tudo novamente. Passou bons e maus bocados com a esposa. Uma doce pessoa que se transformara numa megera com o passar do tempo. Resistiu até onde deu, depois não teve outro remédio senão a separação. Era muita desilusão.

O casal de filhos morava e estudava no Exterior. E pela primeira vez, os dois resolveram curtir o inverno europeu, ver de perto a tão decantada neve.
A ex-mulher não perdeu tempo, já estava com outro, um rapazinho com a metade de sua idade. Parecia feliz, ao menos não o atormentava mais, como nos primeiros meses após a separação. Rumores indicavam que o caso vinha de longa data.

Os pais já haviam falecido e sua única irmã se dedicava à própria família, morava numa fazenda nas distâncias das montanhas gerais de Minas, ficou por lá cuidando da vida.
Um homem em solidão vive remoendo o passado e pisando sem atenção no presente que leva ao futuro.

Estava assim, perdido em suas recordações, naquela noite que se iniciava. Num estalo, sem mais nem porque, resolveu sair de casa, queria respirar, mesmo com toda a poluição da metrópole.

Não queria ir com nenhum de seus carros importados e blindados. Desejava liberdade. O calor estava intenso, chegava a sufocar. Colocou camiseta, bermuda, tênis e pegou a bicicleta que comprou no mês anterior numa loja de produtos importados. Não levaria o celular, queria sossego. Na carteira, apenas os documentos e uma pequena quantia em dinheiro, pois em caso de algum imprevisto seria preciso pegar um táxi.

Assim, bem à vontade, fez o que nunca ousara antes, saiu pedalando pelo bairro em direção ao centro da cidade, já tomada pelas luzes noturnas. As ruas estavam movimentadas, luminosos piscavam no comércio ainda aberto, pois era época de compras.

Pedalava despreocupado entre carros velozes e ônibus lotados. As pessoas iam e vinham apressadas, carregadas de sacolas, como se viessem e fossem a lugar nenhum.
Como sempre ocorre naquela cidade, de repente começou a cair uma chuvinha miúda. Ele não se incomodou, muito pelo contrário, pois aquele frescor molhado era muito bem-vindo.
A sensação de alívio não viera sozinha, junto com ela veio o perigo do asfalto escorregadio. E foi ao fazer a curva, dobrando uma esquina, que ocorreu o inesperado. A bicicleta derrapou e ficou descontrolada, numa fração de segundos percebeu que iria bater com a cabeça em um poste. Não tinha como escapar. Mas, do nada surgiu uma mão firme que parou e segurou a bicicleta, evitando assim uma queda que poderia até ser fatal.

Estava ali, bem à sua frente, quase olhos nos olhos, um mendigo. A primeira sensação foi de repulsa, queria se desvencilhar dele e seguir adiante, mas o olhar silencioso daquele homem o incomodou e ele ficou sem ação, permanecendo estático ali na beira da calçada. Sequer conseguiu ao menos balbuciar alguma palavra de agradecimento.  Logo o mendigo soltou a bicicleta, nada falou nem pediu, apenas lançou um último olhar e se foi debaixo da chuva miúda com um plástico sobre a cabeça. Por uns instantes, o seguiu com os olhos, mas depois resolveu se ajeitar na bicicleta e pedalou com força.

Mais adiante, uma menina de rua, garotinha ainda, pediu uns trocados para comprar alguma coisa e levar para sua mãe na favela. Ele pensou em dizer que não tinha, mas sem nada falar decidiu dar o dinheiro que havia reservado para o táxi, afinal, poderia muito bem ir embora de bicicleta.

A garota, toda feliz, saiu sorridente, correndo descalça entre as pessoas.
Continuou pedalando e pensando no mendigo, que evitou a sua queda e até a sua morte, o que poderia muito bem ter ocorrido caso viesse a cair e bater com a cabeça no poste.  Ao pensar no mendigo, se lembrou que não havia sentindo nenhum odor desagradável, aquele mendigo não cheirava mal; algo bem característico nessa classe de pessoas marginalizadas pela sociedade devido às condições de abandono sob marquises, viadutos e calçadas.

Quando pensou em fazer o retorno para voltar para casa, foi surpreendido por um grupo de jovens mal-encarados, que fecharam um círculo ao seu redor e ordenaram, num linguajar marginal, que descesse da bicicleta, pois queriam levá-la. Aterrorizado, obedeceu sem nenhuma reação.

Em seguida, não antes de levar também o seu tênis, o grupo saiu em disparada entre os veículos. Ele ficou olhando e constatou que os ladrões não passavam de moleques bem crescidos. Foi aí que percebeu o quanto fora imprudente ao decidir sair pedalando na noite em uma bicicleta importada. Seria impossível não chamar a atenção. Aquela aventura só poderia terminar daquela maneira devido ao seu próprio descuido.

Ainda no local do infortúnio, viu o carro se aproximando e deu um sinal com a mão. Quando o táxi encostou, se lembrou que tinha dado o dinheiro para a menina de rua. Naquele momento, com a cabeça quente, com os pensamentos se chocando, não vislumbrou outra saída a não ser dispensar o motorista e seguir a pé, mesmo descalço, como aquela garotinha.
Bem que poderia deixar para pagar quando chegasse até sua casa, mas com a mente em estado de ebulição, nem pensou nessa possibilidade.

E debaixo daquela chuvinha miúda começou a fazer o percurso de volta. Seria uma longa jornada. Pelo caminho, as cenas de tudo o que ocorreu naquela noite se repetiam em sua memória, mas a imagem que mais se destacava era a do mendigo.

Depois de um bom tempo, embora muito cansado, com a sola dos pés ardendo, conseguiu chegar até sua casa. Não fosse aquela chuvinha miúda, com certeza, não teria ido até o fim. Entrou, sentou-se no banco do jardim e fitou os olhos no céu. Estaria delirando ou teria mesmo visto uma grande estrela? Não era imaginação, ela estava mesmo lá no céu, entre tantas nuvens, naquela noite chuvosa.

Estava extasiado com a visão quando os fogos de artifício começaram a espocar por todos os cantos da cidade e a colorir o céu com suas cores brilhantes. Sim, já era meia-noite e havia chegado o Natal.

Não estava se sentindo mais só, ele não parava de se lembrar de tudo o que ocorreu naquela noite, do passeio, do mendigo, da menina, dos ladrões e da caminhada de volta.  Cessados os fogos de artifício, tentou ainda ver a estrela, mas nada, nuvens agora escuras cobriam todo o céu. Levantou-se do banco, olhou para todos os lados do firmamento, só escuridão.

Entrou, tomou um bom banho, nada quis comer, se deitou e continuou com seus pensamentos em turbilhão, o mendigo não lhe saía da cabeça. Aquele olhar parecia ainda direcionado para ele.

Foi à janela do quarto. Queria tentar ver a estrela uma vez mais, infelizmente não foi possível, o céu estava todo escuro, mas como num milagre, pôde sentir a sua luz brilhar dentro de si. Uma leveza nunca experimentada o tomou por completo. Estava convicto, não era delírio, ele havia recebido a visita daquela grande estrela naquela noite de Natal. Havia luz em seu olhar!