Rio de Janeiro, dia 22 de janeiro de 1971.
Em cartaz, a tortura, morte e desaparecimento de Rubens Beyrodt Paiva, de 41 anos, ex-deputado federal, brutalmente assassinado por forças da repressão em um quartel, nos abafados, mefíticos e funestos porões da ditadura militar. O corpo de Rubens Paiva foi enterrado e desenterrado diversas vezes, até que seus restos mortais foram jogados no mar, em 1973.
Mais de 40 anos depois, em fevereiro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade, criada pelo Estado brasileiro para investigar as violações aos direitos humanos nos Anos de Chumbo, confirmou a morte do ex-deputado, indicando os responsáveis por sua tortura e morte. Passados 53 anos, nenhum dos envolvidos no crime foi julgado. E tem mais: por ano, os assassinos de Rubens Paiva e seus dependentes recebem mais de R$ 1,8 milhão de aposentadorias e pensões.
A história do ex-deputado e sua família, liderada por Eunice Paiva (1929-2018), sua esposa, é contada no filme 'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles. Com Selton Mello e Fernanda Torres nos papeis principais, como Rubens e Eunice, o filme, indicação brasileira ao Oscar, emociona o público e tem quebrado recordes de bilheteria, mostrando na tela grande uma das páginas mais sombrias da história recente do Brasil.
Sessenta anos depois, porém, 1º de abril de 1964 ainda está em cartaz, com outros atores, outro cenário e roteiros adaptados.
É o que aponta o relatório da Polícia Federal, que desvendou o plano de golpe de Estado elaborado em 2022, após as eleições presidenciais, que previa o assassinato de Lula (PT) e Geraldo Alckmin (PSB), respectivamente presidente eleito e vice-presidente eleito, e do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Com um punhal verde e amarelo, a ideia era apunhalar a democracia, com apoio de integrantes do alto escalão das Forças Armadas.
Além de Bolsonaro, outros 36 participantes do plano foram indiciados pela PF pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
Apesar da improficiência e da inépcia dos envolvidos, que mais pareciam saídos de um episódio pastelão do 'Quartel Trapalhão', quadro em que Didi, Dedé, Mussum e Zacarias integravam a tropa do famigerado Sargento Pincel, o plano de golpe de Estado trata-se de um episódio de gravidade extrema/extremista. De acordo com a PF, Bolsonaro se envolveu diretamente no planejamento, no roteiro golpista.
“Em pleno século 21 nós corremos um risco real, em 2022, de recair na ditadura, de uma nova ditadura”, disse o jurista Pedro Dallari, coordenador e relator da CNV (Comissão Nacional da Verdade), em entrevista a OVALE. "Como as Forças Armadas nunca foram revisadas e o seu papel institucional redefinido, com transparência, a falta de reexame do que houve no período da repressão fez com que se mantivesse esse vírus antidemocrático que, com o governo Bolsonaro, acabou reaparecendo", completou o jurista.
Dallari refere-se ao mesmo Bolsonaro que, em 1987, então capitão do Exército, apareceu nas páginas da revista Veja com um rocambolesco e irresoluto plano de explosões em quartéis e outros pontos estratégicos no Rio de Janeiro. É o mesmo que elogiou torturadores e disse que o erro da ditadura foi não ter matado mais. Que, de acordo com a Polícia Federal, "planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito, fato que não se consumou em razão de circunstâncias alheias à sua vontade".
Há, neste filme B de Bolsonaro uma compilação de cenas cortadas na carne da democracia, com episódios abomináveis como o 8 de janeiro, o Capitólio brasileiro, e o homem-bomba de Brasília, entre outros tantos. Ao que tudo indica, após a investigação da PF e a possibilidade de condenação dos envolvidos, este plano de golpe saiu de cartaz. Mas, em um país dividido e contaminado por narrativas terraplanistas, ele pode voltar a ser exibido?
“Se não houver essa reformulação, daqui alguns anos nós podemos estar de novo diante de um cenário parecido”, afirmou Dallari a OVALE.
A anistia condena o país a repetir erros do passado?
Com a decisão de anistiar os fantasmas de chumbo e não exorcizá-los, diferentemente do que aconteceu em países como a Argentina (vale assistir '1985', filme que trata do tema), a democracia brasileira parece permanentemente assombrada por um filme que se repete, estrelado pela sede de poder daqueles que sonham repetir 1964, em um remake tenebroso, e que não cansam de nos lembrar que 'Ainda estão aqui'. Já passou da hora do 'The end'.