01 de dezembro de 2024
ARTIGO

Somos (mesmo) donos do nosso próprio nariz?

Por Francisco Estefogo | Taubaté
| Tempo de leitura: 6 min
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A idílica e, a priori, sedutora contemporaneidade, com sua voracidade, automação, fluidez e artefatos persuasivos, mesmo sendo, às vezes, um ambiente um tanto opaco devido à sua uniformidade cacofônica e à homogeneização dos corpos, no qual se forjam nossas aspirações e visões de mundo, tem se constituído por uma dinâmica que extrapola as searas meramente materiais e adentra a complexa tessitura e a dimensão da subjetividade humana. Vivemos imersos na estridência digital de um modelo socioeconômico-ideológico e tecnológico que, perpassando pelos indefectíveis algoritmos e, ao que tudo indica, imposições invisíveis, infiltra-se em cada recôndito da nossa existência. Consequentemente, toda a singularidade da nosso cotidiano pode ser convertida em ativos manipuláveis, persuadíveis, vendáveis e, portanto, normativas rentáveis.

Esse fenômeno, amiudadamente açodado e marcado pela lógica do capitalismo em estado de constante vigília, pode transformar a singularidade da experiência humana em um dado profundamente influenciável e comercializável, como se fossemos “commodities”, ao reduzir a nossa multiplicidade de pensamentos e formas de vivência a uma série de vetores previsíveis, moldáveis, negociáveis e controláveis. Dessa forma, podemos até achar que, às vezes, somos donos do nosso próprio nariz, mas sobreleva ressaltar que, somado aos autoritários ditames dos modos de pensar, existir e ser, no que diz respeito ao que vestimos e comemos, por exemplo, bem como com quem nos relacionamos, dentre outras diárias atividades, a princípio, banais, o vigor colonizador da atualidade é silencioso, sorrateiro e ávido para nos desumanizar e nos forjar como meras mercadorias.

Nessa raia, os possíveis feitos de ruptura emergem como instrumentos dissonantes que visam, à primeira vista, desestabilizar as fundações dessa arquitetônica de controle, tolhimento e manipulação, tal e qual romper com padrões coloniais e desafiar convenções e preconceitos. Ao minar as bases do modelo dogmatizador vigente, tais feitos disruptivos reivindicam, a rigor, a reapropriação da subjetividade e da autonomia individual, além da exumação do manancial epistemológico, de modo a questionar a hegemonia dos algoritmos e da mercantilização da vida. A resistência à força do controle e à sedução mercantilista, portanto, não é apenas uma ação física, mas uma insurgência ontoespistemológica que busca resgatar a autenticidade da experiência humana perante a alienação tecnocrática e ideológica, em adição a tirar os nossos pés enraizados no atraso, pois, ressalta-se, somos construtores da nossa própria história. Para tanto, a visão crítica acerca do mundo que nos cerca é terminantemente fulcral para que possamos legitimar o nosso papel como arquitetos na nosso particular percurso existencial.

Nesse terreno, Sócrates (470-399 a.C.), filósofo grego, por meio do seu método dialético, instigava seus interlocutores a questionarem suas próprias crenças, desafiando-os a transcender as aparências e buscar a verdade por meio do diálogo crítico. Sua atemporal máxima "Só sei que nada sei" é um convite contínuo à humildade intelectual e à busca incessante pela construção dos saberes.  Ademais, Kant (1724-1804), filósofo alemão e um dos principais pensadores do Iluminismo, propôs uma perspectiva ética ao pensamento crítico. Em sua magnânima obra Crítica da Razão Pura, o pensador defende que a razão deve ser a ferramenta para criticar e compreender os limites do conhecimento humano, de forma a promover a racionalidade para não somente entender o mundo, mas para agir moralmente. Outrossim, Russell (1872-1970), filósofo do País de Gales, advogou pela educação como meio de disseminação do pensamento crítico. De acordo como pensador galês, o cultivo da mente crítica é essencial para uma sociedade livre, autônoma, racional e expansionista. Em seu ensaio On the Value of Scepticism, Russell, ao incentivar uma postura de questionamento contínuo e abertura ao novo, argumenta que o ceticismo saudável é um antídoto contra o dogmatismo, a tirania, a opressão e a estagnação epistêmica.

Afora essas ponderações filosóficas acerca da importância do olhar analítico cirúrgico ao nosso entorno, a reflexão de Zygmunt Bauman (1925-2017), filósofo polonês, em sua obra sobre a modernidade líquida, oferece um contraponto potencializador a essa discussão. Bauman argumenta que esquecer o famigerado destino do eldorado pleno, propagandeado, sobretudo, pelo capitalismo, e se manter em movimento, enfrentando os obstáculos com destemor e resistência, é o que confere sabor à vida. Essa filosofia, que celebra a efemeridade e a transitoriedade calcada na nossa inexorável potência de criar e transformar, pode ser vista como uma forma de resistir ao controle e à objetivação do mundo moderno, que busca fossilizar e prever cada passo que damos. A valorização da constante dinamicidade do viver, do improviso e da mudança contrapõe-se à rigidez dos sistemas de manipulação que tentam tolher e encarcerar a liberdade humana em um conjunto de padrões pré-estabelecidos. Nessa toada, questionar, duvidar e analisar criticamente os meandros sociais para refutar os acontecimentos da hodiernidade como “naturalmente postos” são práticas absolutamente centrais para a liberdade, a ética e a justiça, tal qual a expansão dos conhecimentos, com o intuito de propiciar situações para a realização plena do potencial humano.

Destarte, a tensão entre a colonialidade dos tempos atuais, de um lado, e a filosofia da ininterrupta circulação e do pensamento crítico, do outro, delineiam um campo de uma batalha de resistência à questão existencial. Nesse aspecto, a criticidade e a cinesia não são apenas bálsamos redentores para a alforria de sermos o que queremos ser, mas igualmente a própria remição da nossa produtiva natureza humana. Por um ângulo, os oniscientes algoritmos, como pilares colonizadores, representam a tentativa de congelar o fluxo da vida em fórmulas matemáticas, enquanto, por outro, a perspectiva da incessante indagação e da fluidez exalta a práxis como idiossincrasia da insurgente existência humana. A resistência às hodiernas sequências de operações e regras de cálculo, ocorrências que permeiam toda nossa ação no universo virtual da internet, não ocorre apenas no âmbito da ação direta, mas na valorização da ética do ser em contínua atividade, que se recusa a ser capturado e transformado em dados previsíveis e compráveis.

Portanto, ações de ruptura não são apenas reações contra um sistema opressor de regulação, mas a afirmação de uma ontologia que valoriza a liberdade, a imprevisibilidade da vida humana, como igualmente a dilatação epistemológica. Em um cenário onde a previsibilidade é a moeda corrente, manter-se em mobilidade, tal como propõe Bauman, é um ato de rebeldia, resistência e insurgência que desafia as tentativas de controle, alienação e mercantilização da nossa existência.

Dessa forma, grosso modo, movimentar-se no sentido abrangente do viver, como estudar, trabalhar, participar de atividades sociais inéditas, vivenciar novas culturas, interagir com grupos diferentes do nosso “cercadinho individualista”, dentre outras inúmeras sociabilidades multiculturais, multidiversas e plurilíngues, torna-se um possível modo engajado de vida, de resistência e de desalienação. Igualmente, também é uma contínua reafirmação da liberdade diante dos poderes que buscam homogeneizar formas de ser, pensar, desejar e viver outras para, então, convertê-las em triviais mercadorias e, por conseguinte, em capital. Como adverte Karl Marx (1818-1883), filósofo e revolucionário socialista alemão: “quanto menos você comer, beber e comprar livros; quanto menos você for ao teatro, ao baile, ao salão de baile, quanto menos você pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, lutar, etc., mais você economiza - mais você aumenta o seu tesouro alienado. Quanto menos você for, quanto menos você expressar a sua vida, tanto mais você tem, tanto maior é a sua vida alienada."

* Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau