23 de dezembro de 2025
INTERNACIONAL

Professor de São José, Victor França vai à Venezuela entender conflito com a Guiana

Por Victor França | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 6 min
Divulgação
Victor França na Venezuela

Minha última vez na Venezuela foi em 2022. Fui para pesquisar e sentir aquele momento da crise e o cotidiano dos cidadãos e a sua estratégia de se proteger da inflação através da dolarização da economia. Em momento algum ouvi dizer a palavra Esequibo.

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Contudo, sabe-se que o conflito e a disputa são antigos. Alguns venezuelanos, e o próprio governo, chamam a região de “área de reivindicação” (zona de reclamación), e esse nome já vigora desde antes da atual celeuma.

A região venezuelana que faz fronteira com a área é de um cenário extremamente verde, de estradas extremamente precárias e o acesso via aérea mais próximo é através do aeroporto de Puerto Ordaz.

VIAGEM

Considerando os poucos voos diários, tive que optar por um aeroporto mais ao norte, localizado na cidade de Maturin, no estado de Monágua, um dos estados mais ricos em recursos minerais, segundo o portal de entrada.

O destino inicial foi a cidade de Tucupita, localizada no estado Delta Amacuro, já fronteiriço com a área de reclamação. No caminho, já pude observar várias marcas do conflito com pinturas em muros ou até outdoors com o dizer 'El Esequibo es nuestro'.

Questionei se essas expressões militantes estavam ali antes da recente agitação do governo. Responderam-me que não.

No caminho, outra curiosidade e certamente a raiz do conflito: cidades (como o município de Temblador) com esculturas que ilustram uma bomba de vareta (máquina de extração de petróleo) que expressam as riquezas minerais da região.

Contudo, não se vê nenhuma cidade desenvolvida ou com atividade petroleira. Todos os municípios das redondezas são extremamente simples e de casas rústicas.

POBREZA

Muito comércio nas ruas (que nem sempre possuem asfalto) e cenas típicas do terceiro mundo: prostituição à plena luz do dia, venda de carne e peixe sem nenhum asseio e motocicletas circulando com quatro pessoas a bordo, sem nenhum uso de capacete ou outra proteção. Pude ver alguns hotéis dentro das cidades e na estrada: todos abandonados.

Questionando os locais, me disseram que a região no passado tinha uma atividade de extração de petróleo com companhias estrangeiras ali presentes. Depois do nacionalismo chavista, todas se foram e a atividade de explorar os recursos foram sucateadas. Contudo, na estrada percebe-se um oleoduto sobre a superfície, levando o petróleo desde a região do delta até a cidade de Maturin.

Pude passar dois dias num acampamento localizado no Rio Orinoco, que se estende até a fronteira com Esequibo, justamente na fronteira entre os estados de Monágua e Delta Amacuro, com um acesso marítimo até Trinidade e Tobago.

Lá, no acampamento, havia uma pequena biblioteca onde pude encontrar o livro 'La verdad de nuestra Guayana Esequiba', de Horacio Cabrera Sinfotes, de 1987. Essa data é uma referência para se perceber a antiguidade da questão.

O livro defende a tese atual do governo colocando que, em 1905, se concluiu a demarcação do território a partir de um acordo ilegítimo, assinado em Paris no ano de 1899, onde a Inglaterra, sendo a parte interessada, não permitiu que um grupo que representasse autenticamente a Venezuela estivesse presente. Vale dizer que a Guiana conquistou independência de sua metrópole apenas em 1966.

NEOCOLONIALISMO

Assim, a controvérsia reside justamente em remontar à época do neocolonialismo em que se desenhava o mapa de várias partes do mundo a partir dos interesses das potências estrangeiras. Haja vista, inclusive, que se cogitava que ali (no território de Esequibo) poderia ser a legítima localização da cidade lendária de Eldorado.

No segundo e último dia do acampamento, uma visita: a Guarda Nacional Bolivariana. Trata-se de uma força policial federal e militarizada que faz a defesa a nível nacional, inclusive o serviço de imigração é de encargo deles, se posicionando nos postos de fronteira.

Podem ser comparados com a PM do Brasil, mas com algumas diferenças, sobretudo os armamentos muito mais intimidadores. Chegaram para almoçar no local. Conhecidos pela população como 'os verdes' (devido à cor de seu uniforme) possuem uma fama de se colocarem acima da lei na abordagem com a população e das várias extorsões, das quais eu mesmo já fui vítima em 2022, tendo que pagar cinquenta dólares para entrar no país.

Chegaram de lancha: uma oficial, da própria Guarda, e outra com mulheres e crianças, eram os familiares de alguns policiais. Pediram gasolina para o acampamento, que prontamente providenciou. Obviamente, sem custos.

Eis que me chama a atenção um dizer escrito nas extremidades da lancha: 'El Esequibo es nuestro'. Como é uma força do governo, era esperado. Tentei conversar com o oficial do grupo que me disse: “Não quero conversar sobre esse tema”. Foi a única movimentação militar que vi na região, nada mais.

CARACAS

Voltando para Caracas, já pude ver a militância em relação ao conflito desde os trens do metrô da cidade e em vários outdoors. E detalhe interessante: até os souvenirs, não necessariamente de ambientes chavistas, já vendem produtos com o mapa da Venezuela já com o território de Esequibo anexado às demarcações geopolíticas do país.

Questionando a população em geral, o que mais se ouve é que “essa militância do governo é uma piada. Serviços públicos precários, inflação que não tem fim e falta de legitimidade política há anos. De onde o governo tira moral pra começar um conflito repentinamente?”.

Muitos também atrelam o tema ao acontecimento marcante deste ano: as eleições presidenciais. Ouvi afirmações que “os EUA já disseram que vão retornar com sanções mais pesadas caso as eleições deste ano não sejam limpas, de acordo com os observatórios internacionais. Com certeza esse conflito é uma artimanha do governo para suspender as eleições como um artifício para se manter no poder”.

E ainda: “o próprio Chávez arrefeceu esse conflito. Disse na época, por volta de 2004, que essa querela poderia prejudicar a integração latino-americana que, segundo ele, seria o objetivo dos Estados Unidos. Numa reunião com o presidente da Guiana ele proferiu essas palavras”.

No centro da cidade, vê-se sempre algumas tendas do partido de Maduro (o PSUV, Partido Socialista Unido da Venezuela), fundado por Chávez, em 2007. Dessa vez, militavam sobre o tema distribuindo folders e outros panfletos para esclarecer a população sobre a legitimidade do território como pertencente ao país.

Questionando os militantes, ouvi que “a região sempre foi nossa. Nos foi tirada pelas artimanhas do imperialismo inglês no século 19 por meio de um tratado fraudulento. Antes da revolução (chavista) não se falava nesse assunto. Agora a população precisa ser esclarecida sobre o tema”.

Outro partidário ainda disse que “a população venezuelana sabe a verdade sobre Esequibo. Aprendemos na escola todo o processo colonial que demarcou o território como sendo não pertencente ao país. Todos devem estar juntos com essa demanda nacionalista do governo de reaver o que é nosso historicamente”.

SAÍDA

Iria sair do país com uma companhia aérea venezuelana, consigo uma revista da companhia e logo na capa existe um mapa da Venezuela com o Esequibo anexado e o dizer “Venezuela toda”.

Folheando, me deparo com um artigo que trata sobre o tema. Sucinto, porém muito bem escrito, defende a tese que a afirmação que o território pertence ao país possui legitimidade histórica e está afinada com o direito internacional.

Passei pela imigração e consegui ir para a área de embarque. Sem precisar pagar nada, dessa vez, no serviço de imigração.