Mamãe, por que tem cristais no céu? Alice pergunta enquanto confiro o relógio, já são 22h e o terceiro turno me aguarda. Cozinha para organizar, processos para decidir, estico a colcha macia sobre bracinhos miúdos, faço o um, dois três, hora de dormir! Ela, já deitada, insiste na pergunta.
Olho para ela e me lembro do senhor Joselindo, testemunha presencial de crime grave, que, ao ser inquirido, perguntou: posso começar do começo? Ou mesmo da fase árdua de estudos, quando me trancava no quarto e minha mãe lá entrava para um oi, uma conversa rápida, eu fingindo escutar enquanto decifrava cálculos prescricionais.
O mundo quer falar, todos gritam ao mesmo tempo, os assuntos são diversos: amor, dor, vacinas, política, saúde, até mesmo questões complexas da Suprema Corte. Hoje, com a cultura da indiferença, do ódio e da hiperindividualização, os monólogos são infinitos e as conversas estão em extinção. Você, eles, nós acessamos pais, irmãos, maridos, esposas, filhos, amigos, colegas de trabalho, tudo e todos ao mesmo tempo. Centenas de mensagens são gravadas ou digitadas.
E a coisa piora nos grupos de conversa, que funcionam como monstruosa linha cruzada e ninguém parece se incomodar. Muros comunicacionais. Respostas reativas. Comandados por dedos rápidos e insensíveis, queremos postar, cutucar, desejo narcísico, infinita surdez. Fica fácil entender porque viramos donos da verdade. E não dá tempo de pré-aquecer o forno, espalhar o pão de queijo na assadeira e aguardar, em fogo brando, a alquimia acontecer. Nem mesmo o cafezinho coado e cheiroso, até dele já abrimos mão.
Desde quando cristalizamos nossa escuta?
Colocar-se no lugar do outro, abrir-se para algo que você não sabe, não compreender, não dar a resposta adequada ou necessária é caminho incerto. Incerteza leva à angústia, e o mundo está impaciente demais para isso.
Admitir que o mal-entendido é também da essência da comunicação, abandonar o espelho e arriscar, descobrir que a verdade não é objeto de disputa e que a troca, o blá-blá-blá é a experiência maior e o resultado é menos importante que a comunhão, talvez isso seja, de fato, a humanidade que tanto desejamos.
Cristais no céu? Comandada pela ditadura do relógio, teria olhado duro para a pequena e a mandaria dormir. Mas é tempo de retomar a escuta: me estico na cama ao lado dela, em abandono de certezas tolas e murmuro um não sei, me explique melhor. Ela, com sorriso aconchegante, recita a oração que mais gosta: Pai nosso, cristais no céu, santificado seja o Vosso nome...