27 de dezembro de 2024
EXCLUSIVA

‘Poderia voltar da Irlanda com meu filho num caixão’, diz Anderson; João nasceu de novo

Por Xandu Alves | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 13 min
Reprodução / Redes Sociais
Anderson Farias e João Henrique

“Eu poderia estar voltando da Irlanda hoje com meu filho num caixão”.

Anderson Farias, prefeito de São José dos Campos, passou pela maior tragédia da vida no acidente com o filho em Dublin, na Irlanda. Foram dias de angústia, dúvidas e busca por informações entre dois continentes.

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O caso de João Henrique Thomaz Ferreira, 23 anos, repercutiu no Brasil e na Irlanda, após o filho de Anderson ser atropelado deliberadamente por um carro dirigido por um policial irlandês. O garoto teve parte da perna direita amputada.

De volta a São José, na última quinta-feira (9), Anderson falou com exclusividade a OVALE sobre o drama e a recuperação do filho, a repercussão internacional e a investigação sobre o caso. Confira a entrevista na íntegra.

Como está seu filho?

Ele está bem. Fez uns procedimentos ontem [quinta] em Dublin já preparando para a cirurgia de segunda-feira [13], a segunda operação na perna. Os médicos vão decidir com relação a cortar ou não alguns centímetros a mais da perna, se devem aproveitar um pouco da metade do joelho dele para poder aproveitar para a prótese.

Segunda ele vai para essa cirurgia. Estão preparando ele hoje [sexta], fazendo os preparativos. Eles não fazem esse tipo de cirurgia no final de semana. Ele fica de repouso e faz na segunda. Esperamos que dê tudo certo e que o procedimento cirúrgico seja um sucesso até para poder manter essa parte do joelho, metade do joelho dele mantendo vai ser bom.

Como ele está? Tem que ficar sedado ou já está lúcido o tempo todo?

Ele não está mais na UTI, está na unidade semi-intensiva. Está no quarto, num leito. Não fica sozinho, tem alguns pacientes, mas ele tem alguns cuidados a mais, por isso é monitorado. Ele tem que fazer um curativo e pediu que a médica fizesse. Ele tem as coxas abertas nas laterais para poder drenar. Tem muito dreno, muito inchada ainda a perna dele, por causa da reconstituição dos músculos.

Então, tem esse dreno e esses cortes, as laterais da coxa dele estão rasgadas. Toda vez que vai fazer o curativo dói muito e a morfina não resolve nada. A médica resolveu no domingo que a cada 36 horas ela troca o curativo. Ela é quem está fazendo nele. Ela o está sedando. Ele sai do leito, vai para a unidade semi-intensiva para ser sedado e conseguir fazer o curativo. A morfina não resolve a dor que ele sente.

Como está a cabeça dele?

Ele está bem psicologicamente. Ele pediu para ter um atendimento psicológico com um profissional. Ele mesmo pediu e está fazendo uma sessão de atendimento de terapia psicológica com um médico aqui de São Paulo [Dr. Tadeu], ele faz por vídeo. Ele já fez duas sessões. E isso partiu dele. Acho que isso é bom, ele pedindo para conversar. Ele está lúcido, muito lúcido. Sabe do que aconteceu, mas é bom cuidar da cabeça.

Ele conversou com vocês sobre ter perdido parte da perna?

Ele chorou bastante. Teve conversas separadas com a mãe, comigo, conversas com todos juntos. O que falo para ele é o seguinte: ‘João, mantém o sorriso na cara, porque você nasceu de novo’. Ele poderia ter morrido.

As condições de como ele ficou foram muito em função de como ele era, uma pessoa que não bebe e nem fuma. Ele tem uma vida normal, mas bem ativa. É uma opção dele, mesmo porque não puxou ao pai e nem a mãe, nem a família. Não puxou nada. Ele se cuida. Isso foi o que também contribuiu para ele ter resistência e força.

Então, ele nasceu de novo em 28 de outubro. Coloca um sorriso no rosto e bola para frente. Muitas pessoas orando por ele, o que o está deixando muito emocionado. Eu criei um grupo para dividir com ele todas as informações e as mensagens que recebo, o que a imprensa fala.

Essa notoriedade que ele ganhou na imprensa o deixou um pouco assustado, tanto na imprensa brasileira com na irlandesa. Isso não é normal, mas sabemos que o Brasil acabou dando essa notoriedade, a imprensa aqui em São José, vocês do jornal, e lá não teve como não repercutir, até por causa daquela manifestação que teve.

Então, tudo isso deixou ele muito emocionado, mas ao mesmo tempo ele fala assim: ‘Puxa vida, de repente eu posso ser um divisor, eu posso ser um exemplo’. Então, disse a ele para falar isso mesmo. Porque olhar para o corpo do meu filho e faltar um pedaço, para mim é uma coisa muito chocante. Falta um pedaço dele, é um fato. Para ele também é difícil. Ele disse que está assimilando essa situação. Lógico que é difícil.

Os médicos ficam preocupados porque dizem que ele está muito bem, mas esse ‘muito bem’ pode ter uma recaída muito forte psicologicamente. Parece que 90% das pessoas que têm perdas de membros, principalmente pernas, sofrem bem com os impactos emocionais.

Mas os médicos também falaram que, após a alta, é outro tratamento. Por enquanto ele está no hospital, então tem muito medicamento, está tudo ali com certo controle e gestão da questão da dor. Vamos ver quando ele tiver alta e sair de lá, quando for para a rotina do dia a dia, fazer fisioterapia e tudo mais. Hoje ele está bem. Diz que quer e vai fazer [fisioterapia], que precisa fortalecer seus membros superiores. O médico falou para ele que, no primeiro ano, ele vai usar muitos os membros superiores, muita força nos braços. Ele está bem e assimila tudo o que vai ter que passar ainda por alguns meses.

Como acha que seu filho vai reagir quando estiver com a prótese?

Ela já fala um pouco de futuro e acho que está reagindo bem. Ele já fala do que vai fazer, da alimentação que vai ter. Outro dia ele me mandou uma mensagem perguntando sobre pensar em algo de ajudar pessoas com problemas. Se ele superar bem, pode ser um bom exemplo, até para ajudar as outras pessoas. Ele pensa nisso e sabe que mudou a vida dele.

Ele vai ficar quanto tempo na Irlanda?

Os médicos estão orientando para que ele fique lá por seis meses na Irlanda e não saia antes disso. Se der tudo certo com a cirurgia, ele vai para uma clínica de fisioterapia, vai fazer a prótese e os médicos querem que ele faça tudo isso lá na Irlanda. E como eles estão acompanhando desde o início, desde a amputação, eles estão pedindo para que eu faça esse esforço e o mantenha lá por pelo menos seis meses. Depois ele decide se quer vir embora para o Brasil. Mas pelo menos o tratamento que ele faça lá. Nesses seis meses ele não vai estar 100% recuperado, mas já vai estar bem estabilizado, aí o restante é exercício e fisioterapia, e ele já vai estar com a prótese.

Vocês já conversaram com ele sobre isso?

Já conversamos com ele e será uma decisão entre nós. Ele falou que vai seguir o que os médicos estão dizendo. Tem uma médica chefe que ele confia muito nela. Ela conversa muito com ele. O que estão pedindo é um esforço nosso, mas é um esforço mais dele ainda.

Como fica a questão dos custos do tratamento do João? Vocês terão que pagar o hospital?

Ele está no hospital universitário que é o mesmo desde que entrou para fazer a cirurgia da amputação. A gente ainda não conversou com o hospital. Domingo passado eu instituí um advogado na Irlanda, que vai me representar para poder tratar dessa parte de documentação legal, dessa questão médica, se o Estado vai realmente cobrir todas as despesas.

O sistema de saúde é um pouco diferente do Brasil. Não tem SUS lá, mas ele está em um hospital universitário público, que também é privado. O advogado está conversando. Eu estou esperando a Garda se manifestar, porque é um órgão do governo. Por outro lado, o hospital está fazendo tudo que é possível, está dando todo o apoio sem entrar nas questões financeiras.

Não que eu esteja preparado para pagar, mas já estou tendo uma despesa de ter a Sheila lá, de deslocar. Ela está alugando uma casa lá para os próximos seis meses, pelo menos. A casa do João não é possível de adaptar, porque é um sobrado. É uma casa simples e sem nenhum tipo de acessibilidade que ele vai precisar no começo.

O advogado vai ajudar e o Consulado também está ajudando, do ponto de vista de fazer recomendações por escrito, de que sou brasileiro, questão da renda, para poder alugar uma casa na Irlanda que seja mais adaptada para ele nesses primeiros meses. Então, tem esse advogado que vai cuidar dessas questões do hospital, dos custos e tudo isso daí.

Você já pensa em processar o governo irlandês?

Se for necessário, vou ter que entrar com ação contra o Estado, para ele poder realmente assumir as despesas. Mas que eu acho que não vai ser necessário. Mas eu prefiro estar preparado. Quero fazer tudo de acordo com a legislação. E parece que está caminhando bem todo esse auxílio e esse amparo. O atendimento no hospital está OK, mas tem outros que ele vai precisar, como ir para uma clínica. Lá tem uma que chama Clínica Nacional de Fisioterapia, então a gente vai esperar o encaminhamento dos médicos.

Lá tem um capelão responsável pelo hospital que nos tranquilizou. Ele disse para ficarmos tranquilos quanto a essa questão financeira, mas não há certeza. Para eles também está sendo um pouco uma novidade esse acidente, com a amputação e tudo o mais. O país está passando por algo diferente.

A Garda já conversou com vocês?

Ainda não. O que fizemos, por meio desse advogado irlandês, foi notificar a Garda por escrito na segunda [6]. Estamos fazendo tudo por escrito e já encaminhamos para eles. Eles já responderam sobre o processo. Disseram que está caminhando e que todas as informações serão divididas. Na segunda-feira (13), a Sheila terá uma reunião com a Garda e a GSOC [Comissão do Provedor de Justiça da Garda Síochána, espécie de corregedoria da polícia], às 14h de Dublin. Vai a Sheila e o advogado. Com esse advogado as coisas ficam melhores e a gente faz tudo dentro da legalidade e tudo formal, por escrito.

Como está a sua cabeça e a da Sheila?

Eu estou mais tranquilo porque ele não corre mais risco de vida. Porém, os médicos falam que ele tem que ter um acompanhamento. Ele teve a questão das toxinas, por causa da amputação e da gravidade do acidente. Teve muita emissão de toxina no corpo e isso afetou um pouco o rim, chegou ao pulmão. Apesar de eles dizerem que está tudo tranquilo, será no decorrer do tempo que isso vai se manifestando, se ruim ou não.

A gente reza para que não fique ruim, com todos os cuidados que estão sendo tomados. Eu fico meio dividido, porque ele está longe, mas sei que a Sheila está do lado dele e isso me dá uma tranquilidade. Não a tenho aqui e imagina a família, como ficamos todos divididos.

E você ainda tem o comando da prefeitura. Quanto isso pesa?

Tenho meus compromissos com a cidade, que nunca deixei e preciso mantê-los. Lógico que, como pai, meu filho e minha família são prioridades, mas também tem uma cidade e sei das minhas responsabilidades. Fico muito mais tranquilo porque sei que a Sheila está lá na Irlanda. Ela é uma pessoa que se vira. A língua não a atrapalha, apesar de ser diferente ou o não conhecimento. Graças a Deus ela é bem descolada e resolvida. Ela resolve as coisas. Então, isso me dá muita tranquilidade. Além de tudo ela é mãe. Mãe é mãe, e é muito mais do que o pai. E lá tem duas mães, a mãe dele e a avó, a minha mãe.

Quem vai ficar lá com ele?

Minha mãe deve voltar hoje [sexta] para o Brasil, com a minha filha mais nova, que deve embarcar hoje à noite lá em Dublin. Ela chega aqui amanhã e precisa estudar, precisa terminar o ano letivo dela aqui em São José. Mas lógico que fico com a cabeça muito mais lá agora, mas, por outro lado, mais tranquilo do que aquelas primeiras horas e dias da semana passada, sabendo que ele está bem. Eu pude colocar a mão, abraçar, beijar e falar que o amo. Isso é a coisa mais importante e a gente aprende cada vez mais, aproveitar os minutos que temos com as pessoas.

Fico mais tranquilo com a Sheila lá, mas ela também fica preocupada com as coisas daqui, e eu preciso fazer as coisas daqui para deixá-la tranquila. A Sheila é a única que vai ficar com ele, além da namorada. A Júlia é uma jovem bem guerreira, uma pessoa muito bem formada como cidadã. É muito séria e responsável e precisa terminar a faculdade dela na Irlanda. E aconteceu uma coisa muito bacana. A empresa de cuidadores que ela trabalha a dispensou por 30 dias e ainda vai pagar o salário dela em dobro. Ela está no final da faculdade e precisa terminar. A Sheila vai dar essa tranquilidade para ela terminar a faculdade e os estudos. A empresa deu essa ajuda. São atitudes que ajudam muito nesse momento.

Como o acidente vai afetar o futuro do João, com relação à carreira e profissão?

O que ele tinha em mente era ir para lá estudar por dois anos e se aprofundar na língua inglesa. A pandemia prorrogou um pouco mais e ele também acabou ficando um pouco mais na Irlanda. Ele fala e escreve bem em inglês. A namorada dele está fazendo faculdade em Dublin e ele queria fazer uma faculdade voltada pra a questão da Educação Física, para os esportes. Ele gosta de pedalar, de praticar esportes. Ele queria se formar nessa área. Ele vinha estudando fazer essa faculdade na Irlanda ou em Portugal, ou ainda voltar para o Brasil.

E isso é uma coisa da vida. Ele queria estudar o corpo e fazer Educação Física e acabou sofrendo essa tragédia. Que ele supere e trate isso de uma forma que tenha e seja uma superação. O que sinto dele, e ele também fala sobre isso, é que a situação talvez vá trazer para ele um incentivo a mais para continuar naquilo que tinha intenção, que era de ter algo nesse sentido de corpo, de Educação Física. De repente essa tragédia e a superação que vai ter sirvam de incentivos para ele manter o sonho.

Que lição você tira do que aconteceu com a sua família?

Cada vez mais a humanidade precisa ter mais compaixão, não só com as pessoas que a gente não conhece, mas com aquelas que conhecemos e principalmente com a família. Isso me trouxe uma lição. Eu não era brigado com meu filho, muito pelo contrário. Falava com ele com frequência, pelo menos duas vezes por semana. Ele falava diariamente com a minha mãe e com a Sheila. É sempre aquela convivência mesmo à distância.

Todo mundo tem isso e estamos distantes de pessoas que a gente ama. Mas nunca devemos deixar de falar com a pessoa que a gente ama, de falar o quanto gostamos dela. É não perder um minuto das oportunidades de quando você está junto, porque hoje em dia a vida é isso. De uma hora para outra, sem você esperar, recebe uma notícia ruim.

Eu poderia estar voltando da Irlanda hoje com meu filho num caixão, entende? Então, a gente sempre sabe disso, mas não pratica porque, na rotina do dia a dia, a gente acaba deixando de lado. E essas questões são tão pequenas, de uma demonstração de amor. De ligar, às vezes, só para perguntar se está tudo bem, de dizer que ama. O pai, mãe, irmão ou amigos. Quantos amigos nós temos que fazem parte da família. Acho que o que a gente aprende é sempre ter mais compaixão. A gente vê hoje em dia tantas violências na humanidade.

Vou falar do meu filho. O que aquele policial tinha na cabeça para jogar o carro em cima e atropelar o meu filho sem necessidade nenhuma? A gente vê esses casos bárbaros que acontecem. Acho que a lição é fazer cada vez mais enquanto a gente está em vida, porque depois é depois.