Durante muito tempo fui ateu. Deus e a fé estavam esgotados em mim. Mesmo assim, tinha, frente à crença dos outros, profundo respeito.
Nessa época, fui, como estudante de jornalismo, a um congresso de Comunicação Social em Florianópolis (SC), cujo orador principal era dom Hélder Câmara, o “bispo vermelho”, que tanto ódio gerava nos generais da Ditadura Militar. Com o auditório lotado, achei um lugar para sentar na escadinha de acesso à tribuna, a metros do orador. Esperava um discurso voraz, crítico àqueles Anos de Chumbo. Ouvi uma defesa do amor, dos direitos humanos, de uma fé voltada aos pobres, um ode à não-violência. Ele repetiu uma de suas frases favoritas. “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque são pobres, me chamam de comunista”, disse, de batina surrada, corpo mirrado, olhos brilhantes e profundos. Minha fé não renasceu aí (ela renasceria mais tarde, mas isso é outra história), mas ali começou um “namoro” com um tema que me fascina: a face política da fé. Bebi de muitas fontes. Dom Paulo Evaristo Arns; dom Pedro Casaldáliga; Frei Betto (com restrições, confesso); padre Júlio Lancelotti; meu amigo padre Zezinho, autor de mais de 4.000 músicas, inseparável de seu exemplar lido e relido do “Concílio Vaticano 2o”; padre Rinaldo Rezende, de Santana, pertinho da gente, com homílias de tocar a alma. Deles nunca ouvi palavras de ódio, nem em tempos severos. Citei religiosos católicos, mas posso citar pastores, rabinos, líderes do candomblé, espíritas, muita gente. Na mesa da casa dos meus pais, em Cruzeiro, aprendi, criança, a respeitar a liberdade de escolha. Minha mãe, Nívia, criada em um colégio de freiras, repartia o macarrão com frango do almoço de domingo em iguais porções, independentemente da fé do convidado. Um frei amigo, Euclides, disse uma vez algo que não esqueço: Deus age de diferentes formas. E todo templo, por mais simples, como a porciúncula de Francisco, merece respeito.
Penso nisso ao ver as imagens de 12 de Outubro em Aparecida, quando um religioso foi vaiado ao defender que nenhuma criança passe fome no Brasil e um templo foi invadido por pessoas raivosas, com latas de cerveja na mão, rostos crispados de ódio. Um grupo perseguiu um rapaz de camiseta vermelha. Outro, intimidou jornalistas. Sob que Evangelho reza essa horda ensandecida? O mesmo da candidata que postou fotos segurando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em uma das mãos e, na outra, uma pistola? O mesmo em que, segundo Jair Bolsonaro, Jesus seria a favor da liberação das armas? Para piorar, Bolsonaro culpou o arcebispo de Aparecida, dom Orlando Brandes, pelo tumulto. Para quem ainda tinha dúvida, 12 de Outubro tornou evidente: escancararam as portas do hospício no Brasil. Fechá-las, cabe a todos nós. Sem ódio. Pelo voto. Deixá-las abertas é sermos engolidos, definitivamente, pelo caos.