A cena é conhecida: Dom Pedro de Alcântara de Bragança, Príncipe Regente do Brasil aos 24 anos, ergue sua espada e brada ‘Independência ou Morte’ montado em seu portentoso cavalo às margens do riacho Ipiranga, na atual cidade de São Paulo.
Historiadores afirmam que a cena não foi bem assim, com toda essa pompa. Teria sido mais modesta do que retratou o pintor Pedro Américo no quadro “Independência ou Morte”, que ficou conhecido como “O Grito do Ipiranga”.
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O artista terminou de pintar o quadro em 1888, em Florença, na Itália, 66 anos após a independência ser proclamada. Foi a Família Real que encomendou a obra, pois ela investia na construção do Museu do Ipiranga – que será reaberto ao público em 8 de setembro, após nove anos.
No entanto, há uma representação mais ‘modesta’ do cenário da Independência, como retratada pelo artista francês François-René Moreaux, que se especializou como pintor de História.
A tela ‘A proclamação da Independência’, de 1844, foi feita a pedido do Senado Imperial e encontra-se hoje no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
No artigo ‘O sequestro da Independência’, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz desmonta o mito de que Dom Pedro 1º vestia-se e se portava como um herói ao proclamar a Independência do Brasil. Na verdade, os fatos são mais prosaicos e até singulares, contando até mesmo com uma dor de barriga no meio do caminho e mulas para cavalgar.
“O regente [Dom Pedro 1º], que tinha vencido a serra de Cubatão montado numa besta baia gateada, envergava uma farda comum. Para piorar, lá pelo dia 7 de setembro, d. Pedro apresentava um estado de saúde que, embora não tivesse maior gravidade, era por certo desconfortável uma vez que não encontrava suas funções intestinais normalizadas, e de forma intermitente era obrigado a apartar-se da comitiva, alterar o ritmo da marcha e parar a fim de aliviar a dor repentina”, escreve a pesquisadora.
Em resumo, Pedro não estava num cavalo usando traje nobre, montava uma mula, com roupas de tropeiro e lutava contra um terrível desarranjo intestinal, o que não servia em nada para a fama de herói do jovem príncipe ao proclamar a independência do Brasil. O acompanhavam cerca de 38 pessoas.
Diante das notícias de que Portugal exigia a sua volta imediata, Pedro teria saído em disparada em direção a São Paulo. No sentido oposto vinham os mensageiros de José Bonifácio, que o alcançaram ‘no alto da colina próxima do riacho do Ipiranga’.
Foi então, dizem os relatos, em cima de um pequeno declive de onde se podia avistar a pacata cidade de São Paulo, mais ou menos às 16h, que Pedro recebeu a correspondência das mãos do major Antonio Ramos Cordeiro.
Pedro teria lido em voz alta os documentos que determinavam o final de seu ministério e a convocação de um novo conselho.
“A cena aparece narrada em qualquer manual de história do Brasil, mas vale a pena recriar sua teatralidade. Convocado pelo momento, Dom Pedro formalizou o que já era realidade: arrancou a fita azul-clara e branca (as cores constitucionais portuguesas) que ostentava no chapéu, desembainhou a espada e gritou: ‘É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal”, aponta Lilia Schwarcz. “Ainda que a cena não tenha de fato ocorrido dessa forma, a história trataria de construir sentido ao momento”.
Para além das narrativas textuais, afirma a especialista, a “cristalização dessa memória deveu-se igualmente às imagens, sejam elas pinturas, gravuras, litografias, esculturas, produzidas ao longo do século 19”.
Na verdade, o brado do Ipiranga foi um evento sem pompa ou circunstância que, de imediato, não recebeu a importância que tem hoje. Segundo pesquisadores, o 7 de setembro só foi reconhecido como o marco da Independência anos mais tarde. De início, era o 12 de outubro de 1822, data da aclamação do novo imperador, que figurava como ‘dia do nascimento’ do Brasil.
Com o tempo, destaca Lilia Schwarcz, se procedeu a uma seleção quase exclusiva da tela de Pedro Américo e de toda a mitologia por detrás dela, transformada em cartazes, selos e moedas.
Em 1972, em plena ditadura militar e quando se celebravam os 150 anos do 7 de setembro, os militares fizeram uma ‘releitura’ de Pedro 1º no Ipiranga como se ele fosse um militar, e não um príncipe de origem portuguesa.
“Esse é um projeto de passado, um projeto de governo. Que 2022 nos permita imaginar uma Independência menos europeia, masculina e branca”, afirma a historiadora.
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