Em uma das redes sociais de Felipe Camargo, uma publicação em destaque é um vídeo que mostra ele escalando a maior boca de caverna do mundo no Parque do Petar, no interior de São Paulo. Foram 280 metros e 21 horas em uma das ascensões de maior dificuldade da América do Sul.
A imagem aberta no início da produção dá uma noção do tamanho do desafio, e um frio na barriga dos meros mortais. Mas se torna quase inimaginável pensar que o protagonista, pendurado a muitos metros acima do chão, aprendeu a lidar com o medo de altura para viver tais aventuras.
Como, então, Felipe conseguiu se tornar um dos principais nomes da modalidade no mundo? A resposta está na experiência que adquiriu ao longo dos anos e na confiança no equipamento.
"Eu tenho medo, realmente. Eu não gosto, por exemplo, de fazer uma trilha sem equipamento algum, que passa perto de um penhasco, de um abismo. Não me sinto confortável. Mas eu tenho total confiança nos equipamentos. Eu sei que, se eu fizer tudo certo, o equipamento é feito pra aguentar. Eu tenho medo, mas tenho total confiança no equipamento", disse Felipe Camargo.
"Faço questão de checar, checar de novo e conferir tudo, sabe? Ficar bem atento. A escalada é um esporte super seguro, todo equipamento é bem dimensionado, é muito difícil acontecer alguma coisa se não for falha humana. Então consigo ficar tranquilo e superar esse medo", completou.
Recentemente, Felipe escalou a via nomeada de Abaporu, que fica na Serra do Cipó (MG), a primeira com graduação 9B da América do Sul. Se tornou, inclusive, o único sul-americano a ter subido uma via com essa dificuldade.
"É uma das escaladas mais difíceis do mundo. Tem hoje menos de 30 pessoas no mundo que fazem essa graduação de dificuldade. São pouquíssimas vias no mundo inteiro que tem essa graduação. É uma linha muito tênue entre o que é possível e o que é impossível. É difícil encontrar na natureza uma escalada dessa dificuldade. Essa via que eu fiz, fiz uma versão mais fácil dela, em 2023, que começava mais pelo canto esquerdo da parede, assim, e aí acabou virando a graduação de 9A, que é um pouco abaixo. Mas já em 2023, sabia que eu queria voltar pra tentar essa via", disse.
A familiaridade com a qual Felipe encara as enormes paredes reforça uma prática de quase três décadas. "Comecei com 10 anos, em 2001. Comecei como qualquer outra criança: vi uma parede de escalada, experimentei e gostei. Comecei em um Sesc, em São José do Rio Preto".
A brincadeira, aos poucos, foi ganhando contornos mais sérios e logo vieram as participações em campeonatos. Também de maneira precoce, pode-se dizer, Felipe também começou a conhecer as conquistas.
"Eu fui gostando, comecei a treinar mais e os instrutores falaram que eu levava jeito. Quando eu tinha 13 anos, comecei a participar de campeonatos. Com 14 anos, eu fui campeão sul-americano juvenil. Quando ganhei o Brasileiro adulto, com 16 anos, falei: 'acho que dá para levar isso a sério e é o que eu quero'".
"Era uma coisa que não existia no Brasil ainda. Lembro até de ter essa conversa com os meus pais e falar que não ia fazer faculdade: 'vou terminar o colegial aqui e vou me dedicar 100% à escalada'. Minha mãe me perguntou se existia escalador profissional no Brasil? 'Alguém ganha dinheiro com isso no Brasil?' E não existia, mas fora existia e eu disse que dava para fazer acontecer", continuou.
Em 2014, Pikuira, como é conhecido pelos mais próximos, unificou os títulos brasileiros de boulder. Passados dois anos, ele e a americana Sasha Digiulian superaram a via de 650 metros da Pedra Riscada, um dos maiores paredões rochosos das Américas, em Minas Gerais. Foram os primeiros a completar a via de uma só vez. Em 2017, tornou-se o primeiro latino-americano a escalar a dura via El Bon Combat.
Algumas das escaladas ele eternizou em tatuagens e, na pele, ele carrega parte da carreira.
Se outrora Felipe teve de fazer as malas rumo ao exterior para dar os primeiros passos na carreira, atualmente o cenário da modalidade é outro, e mais promissor para quem pratica, segundo avaliação do atleta.
A escalada está crescendo muito. Teve um boom muito grande no mundo inteiro de 2016 para cá por causa de várias coisas. Acho que houve um movimento em que as pessoas começaram a descobrir o esporte e ver que é muito completo, muito legal. Teve também o "Free solo", documentário sobre o Alex Ronald e que ganhou o Oscar, e deu uma visibilidade muito grande para a escalada no mundo todo. Depois, o anúncio, em 2016, de que a escalada viraria esporte olímpico, que aqui foi algo que deu uma repercussão muito grande.
Felipe também contribuiu para essa mudança. Foi o campeão do Ultimate Beastmaster, reality da Netflix, na edição de 2017. "Teve muita gente que começou a escalar porque me viu lá (risos). Então, foram várias coisas acontecendo. Quando virou olímpico, houve também um aumento de investimento, a federação recebendo ajuda do COB para a seleção brasileira..."
Quando tinha entre 16 e 19 anos, Felipe viajou pela Europa em algumas oportunidades para participar de competições. Certa vez, após expirar o visto, resolveu ficar e teve de driblar as fiscalizações para não ser deportado.
"Vivi muitas aventuras quando eu era moleque. Viajava com o que dava para a Europa, tentando competir o máximo possível, escalar o máximo possível. A passagem já era muito cara. Uma vez que estava lá, tentava aproveitar o máximo. Ficava na casa de amigos, em academias de escalada, galera deixava dormir nos colchões... Ia dando um jeito. Em uma dessas, deu os três meses que eu tinha pra ficar, mas tinha um campeonato no mês seguinte. Falei: 'não vou embora'. Torci para dar sorte de ninguém me pegar"
"Tinha um grupinho com outros gringos, um mexicano, um espanhol, um americano, e viajávamos juntos para esses campeonatos. Todo mundo meio que na mesma, sem muita verba, querendo dar um jeito. Nunca imaginei que, anos depois, voltaria à Europa para um treino em campo da Red Bull, com tudo pago e com os melhores do mundo".
Desde 2018 Felipe é um dos administradores da Fábrica Escalada, uma academia que, além de ser um local para as pessoas aprenderem e praticarem a modalidade, é onde ele faz parte dos treinos e preparação ao longo da temporada.
No Brasil, as academias tinham um padrão muito antigo ainda, então, quisemos dar uma modernizada no cenário nacional da escalada. Ideia foi trazer os padrões de academias da Europa pra cá. E foi algo que sempre pensei: a vida de atleta não é longa. Precisava empreender, ter um planejamento financeiro e estava em meus planos abrir um negócio.
Quando não está a muitos metros de altura ou na academia, o alpinista ainda curte a adrenalina e o contato com a natureza. "No tempo livre, gosto de fazer os esportes em que eu sou ruim (risos). Gosto de tentar surfar, ando bastante de kite, curto kart, e gosto de estar tranquilo, estar na natureza. Importante para voltar motivado".
E nos esportes em "que é ruim", Felipe já teve dicas de quem é bom. "Já tive a oportunidade de surfar com o [Pedro] Scooby, com o Ítalo [Ferreira], com o Adriano de Souza. No automobilismo, sou muito amigo do Felipe Fraga, que foi piloto da Red Bull por muitos anos. Estamos sempre juntos".