05 de dezembro de 2025
GAZETILHA

O conforto no caos

Por Corrêa Neves Jr. | Editor do GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min
Reprodução/IA

“O verdadeiro campo de batalha é o coração do homem”

Albert Camus, filósofo e escritor argelino

Andar pelos salões do Palácio de Versalhes, símbolo máximo do luxo, da opulência e do império francês em seu auge, é como caminhar dentro de uma biografia feita de muitas batalhas - e de doses ainda maiores de vaidades. No silêncio espesso das galerias (quando você dá sorte de caminhar sem uma horda de turistas ao seu redor), entre tapeçarias e douramentos, o tempo se organiza em torno da glória da França.

Lá estão, lado a lado, os quadros que transformaram guerras em epopeias: Austerlitz, Wagram, Jena, Friedland. Batalhas sangrentas convertidas em coreografias heroicas, pinceladas que escondem o frio, o medo, a carne rasgada por espadas e pólvora.

As lanças apontam para o alto, os cavalos relincham em gesto de triunfo, e Napoleão, sempre ele, surge calmo, altivo, no centro da tempestade, como se o caos fosse o seu elemento natural.

Mais adiante, os corredores levam você até a Sala da Coroação. Ali, o pintor Jacques-Louis David ergueu o mito em óleo e tela: Napoleão ignora o Papa, representante de Deus na Terra, e coroa a si mesmo, e depois Josefina, diante de uma corte ajoelhada. O pincel não registra um homem: registra a certeza absoluta de um destino, o que, curiosamente, o futuro revelaria muito distinto.

A cena tem a serenidade de um rito religioso, quase mítico, mas é, na verdade, um golpe de Estado pintado em câmera lenta. Na moldura, o poder se disfarça de legitimidade. O que era apenas um general se converte em Deus de si mesmo. A cada passo, a galeria repete o mesmo mantra: vencer é existir. A derrota, quando aconteceu, não entrou no quadro.

Há homens que só respiram quando o chão treme. Napoleão foi um deles. Donald Trump, o presidente americano, é outro.

Ambos habitam a mesma geografia mental: o campo de batalha. São seres que não sabem viver sem inimigos, porque é no conflito que encontram sentido, palco, aplausos, validação. Quando tudo parece estável, provocam o abalo. Se não houver um, inventam.

Quando o poder ameaça escapar, criam a guerra que os devolve ao centro. Não suportam o tédio da normalidade nem a rotina das instituições. Precisam da pólvora simbólica, da sensação de que o mundo depende de seus gestos. Em comum, têm a crença de que a ordem é frágil e que só o caos confirma sua grandeza.

Trump, como Napoleão, precisa de um cerco para sentir-se imperador. E quanto maior o incêndio, mais nítido ele se vê no espelho, ainda que seja incapaz de enxergar a realidade.

O problema é que, diferente das telas de Versalhes, onde a vitória é garantida pela tinta e pela versão romantizada da “história” que registra as glórias, o mundo real não oferece moldura para o desastre. E a história, quando volta, costuma cobrar juros de sangue.

Desde o início de seu atual mandato, que ainda nem completou um ano, Donald Trump parece governar a partir do front. O noticiário é uma sucessão de deflagrações: guerras comerciais, sanções, retaliações, provocações diplomáticas. Tarifaços contra o mundo, pouco importa se o alvo é aliado ou inimigo. Ameaças a outras potências, intervenções de tropas federais em Estados governados por democratas, a transformação calculada de imigrantes em um “exército invasor” a ser contido na fronteira ou expulso sob porrete se já estiverem instalados em busca do “sonho americano”. A lógica é simples: se não há conflito, é preciso criar um. Se faltam inimigos reais, invente um.

Como em todo bom enredo bélico, há também as vitórias pontuais – relâmpagos de glória em meio à fumaça. O cessar-fogo na Faixa de Gaza, por exemplo, foi vendido como feito pessoal do “pacifista” Trump. O poder do porrete, disfarçado de diplomacia, impôs uma súbita consciência tanto ao Hamas quanto a Israel.

Trump apressou-se com a ideia de um Nobel da Paz, como se o mundo tivesse que coroá-lo por cessar um incêndio que, em alguma medida, ele ajudou a manter aceso. Mas o pior é que nem três dias se passaram desde a assinatura do acordo e lá estava ele em nova batalha. Desta vez contra a China, alvo de tarifas de 100%, insultos públicos e ameaças veladas. Vencer não é o mais importante. Guerrear, sim. O conflito é sua respiração, o palco em que se sente vivo. Quando não há inimigo real, fabrica um - e chama de destino.

Há líderes que governam com ideias, outros com símbolos. Trump governa com choques. Ele entende o poder como espetáculo e a política como duelo. Não busca consenso, busca aplauso, mesmo que as palmas venham do estrondo. É a liturgia da desordem: cada conflito o reergue, cada adversário o reafirma. Para ele, a paz é um intervalo inconveniente entre duas batalhas. E o diálogo, um desperdício de palco.

O perigo é que, nesse tipo de liderança, o campo de guerra se expande até engolir o próprio mundo. As nações viram trincheiras, a imprensa, uma inimiga, e a verdade uma vítima. Enquanto o público se acostuma ao barulho, o poder real - o que decide vidas, muda mercados e redefine fronteiras - vai sendo exercido sem ruído, longe das câmeras, entre decretos e tweets.

A história já conhece o roteiro. Napoleão também acreditou que podia redesenhar o planeta a partir do próprio impulso, até descobrir que não há glória suficiente para sustentar um império construído sobre a exaustão dos outros. Trump segue a mesma trilha: quanto mais se isola, mais precisa da guerra para existir.

Versalhes, com seus espelhos e batalhas pintadas, é o retrato do que sobra quando o poder acredita ser eterno: salões vazios, ecos de marchas e vitórias que ninguém mais escuta. No fim, não há inimigos a derrotar - apenas o vazio que cada um carrega dentro de si. É ali, no coração do homem, que todas as guerras começam.

Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias. Este artigo é publicado simultaneamente em toda a rede Sampi, nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCNet), Campinas (Sampi Campinas), Franca (GCN), Jundiaí (JJ), Piracicaba (JP) e Vale do Paraíba (OVALE).