"O palácio é um lugar perigoso: nele, ouves muito e entendes pouco"?
Niccolò Machiavelli, escritor e filósofo italiano
Definir como “amargo” o final de semana dos moradores do Palácio da Alvorada ou dos titulares dos principais gabinetes do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios é de um otimismo delirante. Foi, certamente, horroroso.
Desde a última sexta-feira, 14, os dados divulgados por pesquisas de avaliação de governo realizadas pelo Datafolha e Ipec tiveram o mesmo efeito do exame médico que confirma a gravidade de um diagnóstico que o paciente, apesar de todos os sintomas, prefere, há meses, rechaçar.
É inútil. Não cura a doença nem acelera o tratamento. Só ilude, recurso a que o governo Lula tem apelado com certa dose de infantilidade para forjar uma realidade alternativa. Obviamente, não deu certo. Os números, frios, conferiram concretude ao que todo mundo sabe: o governo vai mal, o presidente vai mal, o país vai mais ou menos. É simples. Nenhuma habilidade sobrenatural é necessária para se chegar à mesma conclusão.
A primeira pancada veio com o Datafolha. Segundo o instituto, hoje, apenas 24% dos brasileiros consideram o governo do presidente Lula “ótimo/bom”. É uma espantosa queda de 11 pontos percentuais desde o último levantamento, realizado em dezembro, há cerca de apenas dois meses. Na prática, significa que Lula perdeu o apoio firme de um em cada três de seus mais entusiasmados apoiadores. Tem mais. Avaliam o governo como “regular” aproximadamente 32% dos entrevistados. Uma fatia de 41% considera a gestão Lula como “ruim/péssima”, um crescimento de 7 pontos. Apenas 2% não sabem ou preferiram não responder.
Quando se olha em segmentos específicos, as más notícias ficam ainda mais sombrias. Entre os mais pobres, base tradicional de apoio ao presidente Lula, formada por aqueles que ganham até dois salários-mínimos, o apoio despencou de 44% para 29%.
Quando se olha para os evangélicos, o apoio ao presidente caiu de 30% para 21%, e entre os católicos o tombo foi ainda maior: simplesmente metade deles deixaram de aprovar o governo, levando a um recuo de 48% (em dezembro) para 24%, agora.
E como andam os menos estudados? Também irritadíssimos com o governo, o que fez com que o apoio entre aqueles que têm apenas o ensino fundamental caísse de 53% para 38%. Nem mesmo os nordestinos andam pacientes com o governo, o que é traduzido pela queda da aprovação de 49% para 33%.
O segundo choque de realidade veio com os números do Ipec. Estes revelam que os brasileiros não só avaliam mal o presidente, como não desejam que ele esteja à frente do governo num próximo mandato. Segundo o Ipec, 62% defendem que Lula sequer se candidate à reeleição, enquanto apenas 35% querem ver seu nome mais uma vez na disputa. Traduzindo em miúdos: os brasileiros, majoritariamente, hoje avaliam o desempenho do presidente como ruim e não acreditam que ele seja capaz de reverter coisa alguma. Estão desesperançosos e desiludidos.
O menu das opções que “explicariam” os resultados depende mais do gosto, ou percepção, de quem opina do que da realidade propriamente dita. Há quem culpe a comunicação do governo, outros apontam a influência de Janja, ou a crise provocada pela polêmica do PIX. Tem também a inflação de alimentos e as declarações estapafúrdias na sequência feitas pelo próprio presidente como possíveis “responsáveis” pelo tombo. Todas estão corretamente apontadas como problemas, mas não são a causa primordial. São, apenas, manifestações secundárias de um mal maior. Na origem, na sua fundação, o culpado e o responsável pelo que se colhe hoje é quem plantou as sementes há algum tempo, quem não cuidou do que devia, quem ignorou o mundo. O próprio presidente Lula. Ninguém mais, nem menos.
Há uma espécie de maldição, praga, chaga que acomete chefes de governo, sejam eles presidentes, primeiros-ministros, reis, governadores, prefeitos, no Brasil e fora daqui, e que normalmente começa a se manifestar já nos primeiros minutos depois de sua ascensão ao poder. Não tem nome, mas seus sintomas e efeitos são bem conhecidos.
Eleito, o sujeito imediatamente corta, ou perde, a conexão com o mundo real. Não entra mais num táxi, não vai a um restaurante, não discute nas redes sociais, não assiste à TV nem ouve rádio, não dirige o próprio carro, não para no posto, não vai à padaria nem ao mercado, muito menos à igreja, ao cinema, ao teatro, a um jogo de futebol. Ele se isola. A vida passa a ser no palácio, na sede do governo. O mundo ganha um filtro. A percepção, antes personalíssima, passa a ter o viés de quem leva a informação, fortemente afetada pelos próprios interesses do interlocutor.
É a gênese da desgraça. O governante não vê mais o mundo como ele é, mas a partir dos relatos de quem com ele interage. Na maior parte das vezes, são relatos desconectados da realidade, distorcidos por interesse, incompetência ou instinto de sobrevivência.
É difícil desagradar ao “rei”. É duro falar, para quem manda e tem poder sobre o seu emprego, o que ele não quer ouvir. “Melhor”, avaliam os asseclas, “dourar” a pílula, enaltecer o “chefe” e culpar todo mundo pelo que não dá certo. Há ainda uma pequena crueldade adicional. Tais parasitas “vendem” ao “chefe” a ideia de que todo mundo que vai conversar com ele tem um interesse espúrio qualquer: normalmente dinheiro. Criam um ambiente de desconfiança generalizado e blindam o acesso ao governante. Pronto: está criado o caminho para o caos.
Deu-se exatamente isso com Lula. Instalou-se no Palácio da Alvorada com a Janja, que não foi eleita para nada mas controla todos os acessos pessoais ao presidente. Cercou-se de asseclas no Planalto. Homem já com quase 80 anos, não domina as redes sociais e sequer tem um celular para chamar de seu, como se estivéssemos ainda em algum ponto dos anos 80.
Se algum parlamentar diz que as coisas não vão bem, sempre há o pau-mandado para dizer que o cara não presta, ou quer “dinheiro”, ou está interessado em algum cargo. Se a imprensa crítica, a mesma imprensa que se posicionou francamente contra o golpe de Estado que desejava ser perpetrado por seu antecessor, é porque quer “publicidade” – nunca porque os argumentos podem fazer sentido. Quando um empresário aponta erros na condução do governo é porque é ganancioso, corrupto. Se um ministro pensa diferente é “traidor”. E por aí vai...
A “realidade” aceita é apenas aquela transmitida pelos asseclas, ou por outros tipos de parasitas que ouvem uma conversa e correm para “transmitir” as informações, também distorcidas, ao governante, como se isso os fizesse cair nas graças deste e ainda que, com grande frequência, também sejam eles criticados e ridicularizados mesmo após os tapinhas nas costas, traço característico de encontros com políticos quaisquer.
Assim, implodem-se pontes. Forjam-se inimigos. E os problemas reais, que precisam ser enfrentados, ficam sem qualquer combate. Crescem as dificuldades, despenca a popularidade. Uma hora, a conta chega – normalmente, ainda antes do próximo ciclo eleitoral.
Lula está preso no passado, refém de visões de um mundo que, de fato, não enxerga nem consegue entender. Ainda acha que o sonho do brasileiro é comprar uma geladeira, ter uma TV de tela plana, comer frango com farofa na praia de Santos e conseguir um emprego com carteira assinada. Chovem declarações suas nos últimos anos que deixam clara esta rasa percepção. Para Lula e sua turma, músico não é profissão, produtor de conteúdo não é profissão, motorista de aplicativo não é profissão, pequeno investidor da bolsa não é trabalhador, comerciante online também não, e por aí vai.
Para ele, emprego mesmo é com carteira assinada, com direito a décimo-terceiro e jornada das 9h às 17h, todos itens que passam longe do desejo de jovens que querem liberdade para trabalhar em jornadas flexíveis, com contratos idem e remuneração atrelada aos resultados. Bens de consumo, grande parte da população já tem. E a miséria absoluta, que ainda existe, hoje é muito menor, especialmente em função dos ajustes do plano Real dos anos FHC e dos primeiros governos do próprio Lula. E essa é a suprema ironia: o presidente está tão desconectado da realidade que não percebe que ele mesmo ajudou a forjar os novos tempos e anseios que reluta em enxergar.
Há que se considerar que, fundamentalmente, Lula não é responsável pela maior parte dos problemas. Qualquer presidente, de direita ou de esquerda, teria que lidar com os mesmos desafios se estivesse em seu lugar. A inflação de alimentos, por exemplo, é desafio global, que tem mais a ver com o preço do petróleo e a guerra da Ucrânia do que com qualquer problema local. Mas como lidar com isso é responsabilidade integral do seu governo.
Qual o projeto de país que temos? Para onde Lula pretende levar o Brasil? O que ele tem feito para mitigar os efeitos dos preços nos mercados? Como vai preparar o Brasil para esta nova realidade do trabalho? Não há respostas, simplesmente porque não há um projeto claro. Temos um governo que apenas reage às crises, pontualmente, e não apresenta um caminho claro para superar os obstáculos. Lula é um boxeador no corner, apanhando de um adversário que encaixa seus golpes com precisão, e parece ter pouco fôlego para reação.
O Brasil está à deriva. Lula parece cego. Pode ser que consiga reverter e colocar o país nos trilhos, mas não apostaria muito nisso. Não porque faltem a ele habilidade, meios, atributos. O que lhe falta, de fato, é um choque de realidade. Tomara que, pelo bem do Brasil, e a despeito dos puxa-sacos, dos assessores interesseiros, e da Janja, o presidente consiga olhar para os números das pesquisas Datafolha e Ipec com a atenção que merecem. E, feita a análise e assimilado seus impactos, encontre forças e inspiração para liderar o país. Esta é sua função. É para isso que foi eleito. E este é o único caminho que pode melhorar o cenário atual. Qualquer outra alternativa fará com que seu terceiro mandato termine de forma melancólica – e o país afunde num buraco do qual será cada vez mais difícil sair.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.