27 de novembro de 2024
OPINIÃO

Ainda estou aqui


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Filme de Walter Salles, “Ainda estou aqui” é um trabalho de sutileza e beleza raras. Conta parte da trajetória de Eunice Facciola Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, cassado pela ditadura militar, sequestrado de sua casa, torturado e morto por agentes da repressão, em janeiro de 1971.

Baseado na autobiografia homônima escrita por Marcelo Rubens Paiva, um dos filhos do casal, o filme de Salles deixa de lado super-herois, superpoderes e  idealizações e centra-se na vida de uma mulher que precisou refazer completamente sua vida e a de seus cinco filhos, sem ter sequer o direito de vivenciar o luto – o corpo de seu marido não foi encontrado e o governo militar nunca reconheceu sua morte.

O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega mostra a casa ampla em que moravam, à beira da praia, no Leblon, no início da década de 1970. Num Rio de Janeiro ensolarado, com a garotada curtindo jogar bola na rua e na praia. Uma família receptiva, com a casa sempre cheia de amigos do casal e dos filhos. A narrativa é ágil. A Eunice interpretada por Fernanda Torres é uma mulher elegante, discreta e firme. Administra casa e família, com olhos atentos a tudo e a todos – as roupas, a comida, os modos. Selton Mello faz o Rubens bonachão, engenheiro civil sócio de construtora, homem político que trocou a militância partidária pela engenharia e pela família, sem deixar de auxiliar quem estava numa pior no exílio. E esse contato com exilados vai levá-lo ao xilindró dos meganhas, à tortura e assassinato. Mas os maus-tratos não aparecem na tela. Rubens é levado de sua casa em 20 de janeiro de 1971 por agentes da repressão, posteriormente identificados como militares da Aeronáutica. O ex-deputado dirige seu próprio carro e vai a um quartel da polícia política, no Rio. O comedimento e discrição de Fernanda e Selton na despedida é das grandes e delicadas cenas do filme. Ele nunca mais voltou para casa. Eunice também foi levada, junto com uma de suas filhas para depor. A filha foi solta no dia seguinte da prisão. A mãe retornou para casa doze dias depois, com dez quilos a menos. Ela precisa cuidar da família agora sem o marido e sem a certidão de óbito – afinal, para a ditadura ele era um “desaparecido político”. Alguém que na versão oficial da tigrada tinha sido sequestrado por terroristas e levado de seu próprio carro para local desconhecido. Eunice muda-se para São Paulo – a saída da casa é outra das grandes tomadas de Walter Salles --, estuda Direito, torna-se advogada. Passa a militar pelos direitos humanos. Transforma-se em referência nacional e mundial quanto o assunto é demarcação de terras indígenas.  

Lançado no início deste mês, “Ainda estou aqui” já é um sucesso de bilheteria e de crítica. Seu roteiro foi premiado no Festival de Veneza, onde o filme acabou aplaudido por dez minutos pelo público. É a indicação brasileira para a categoria de melhor filme estrangeiro do Oscar 2025. Independente de festivais e premiações, “Ainda estou aqui” é dessas preciosidades que a cultura brasileira produz e que deve ser consumida como água da bica. Indispensável.  

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)