“A vida é uma viagem, não um destino”
Ralph Waldo Emerson, escritor e filósofo americano
Muitas motivações passam pela cabeça de quem decide participar de uma feijoada como a do “Seo Rosa”, promovida há mais de 20 anos em Campinas pelo bar de nome homônimo que recebe em suas duas unidades, em tardes e noites habitualmente animadas, aquela parcela de brasileiros que se convenciona chamar de “elite”. A feijoada é promovida anualmente e, apesar do preço alto, reúne uma multidão – não há, aqui, qualquer hipérbole ou exagero. Nada menos de 3,5 mil pessoas aceitaram pagar no mínimo R$ 750 cada pelo convite para a última edição da festa, realizada no sábado, 27 de maio, na fazenda Santa Margarida, no distrito de Joaquim Egydio, exatamente o mesmo local que sediou o evento nos dez anos anteriores.
Há quem vá para paquerar, de olho nos homens e mulheres que se espalham pela área da idílica propriedade durante as dez horas da festa embalada pelo som de DJs e doses generosas de variadas bebidas. Muitos vão para celebrar com amigos, reunidos em grupos no meio da agitação geral, certamente relembrando momentos de histórias de vida partilhadas ao longo do tempo. Tem os que vão pela comida propriamente dita, servida em versões que variam da tradicional até a vegana (sim, tinha neste ano feijoada sem carne). Há os que estarão ali para ver o que rola, curiosos pela experiência, e os que pretendem apenas ser vistos, como avis-raras exibicionistas. Tem ainda os que não vão por nenhuma destas razões – estão ali porque trabalham no evento, e a feijoada é só mais um dia de luta.
Pouco importa qual tenha sido a motivação, é certo que ninguém que participou da feijoada do Rosa imaginou, por um instante sequer, que um carrapato minúsculo, com tamanho que varia de 3 a 6 milímetros e se esparrama, de forma praticamente imperceptível, pelo mato, poderia, de qualquer forma, se converter num problema grave. Muito menos, que pessoas corriam o risco de morrer vítimas deste aracnídeo conhecido como “carrapato-estrela”, primo de aranhas, escorpiões e ácaros, e que transmite uma doença conhecida como “febre maculosa”. Mas, infelizmente, foi exatamente isso que aconteceu. Calcular quantas pessoas acabaram infectadas é tarefa praticamente impossível - os sintomas da tal febre são muito semelhantes aos de uma gripe forte ou aos da dengue e seu diagnóstico é demorado. Mas é certo que pelo menos quatro delas, todas jovens sem quaisquer problemas de saúde, pagaram o maior preço possível: acabaram morrendo.
Perderam a vida depois de passarem pela Feijoada do Rosa o piloto de corridas Douglas Costa, de 42 anos, de Jundiaí, e sua namorada, a dentista paulistana Mariana Giordan, de 36 anos; a também dentista Evelyn Santos, de 28 anos, natural de Hortolândia e que mantinha consultório em Campinas; e a adolescente campineira Erissa Nicole Santos Santana, de 16 anos. Douglas, Mariana e Evelyn compraram convites para participar da festa. Erissa, filha de um socorrista que tem uma empresa de ambulâncias que prestava serviços para o evento, esteve na fazenda por apenas dez minutos, para levar uma bolsa de medicamentos para o pai. Todos começaram a apresentar sintomas nos dias seguintes, tiveram piora rápida e não conseguiram se recuperar. Os diagnósticos, praticamente todos após os respectivos óbitos, confirmaram que foram vítimas de febre maculosa.
É um raro caso em que não há quem responsabilizar. Não seria justo nem pertinente, por mais que o inconformismo diante de mortes tão precoces force qualquer pessoa, com mínima sensibilidade, a tentar encontrar uma explicação, a buscar identificar alguém a quem se possa atribuir a culpa por tão repentino e trágico desfecho.
Os donos da fazenda, por exemplo. O que poderiam ter feito de diferente? Me arrisco a dizer que nada. A fazenda está numa área sujeita a febre maculosa, mas não é a única propriedade nesta condição. Há inúmeras outras, públicas e privadas, na mesmíssima situação. Houve eventos antes, sem tragédia semelhante que tenha sido tornada pública. Não há lei que proíba o aluguel e, sinceramente, não parece crível que alguém vá deixar de pisar num gramado qualquer porque corre o risco de topar com o “carrapato-estrela” e se infectar. Nem num mundo ideal esse seria o comportamento esperado.
Quando aos proprietários do bar que fizeram a feijoada, que conduta negligente poderia ser a eles atribuída? Que remédio existe que possa prevenir a presença dos carrapatos? Que exigência legal foi colocada e ignorada pelos promotores da feijoada? Nenhuma, pelo que se pode depreender.
Mesmo com relação ao prefeito de Campinas, Dário Saadi (Republicanos), é difícil, para não dizer injusto, atribuir responsabilidade direta sobre o que houve. O que mais ele, ou qualquer outro que ocupasse o seu cargo, poderia ter feito? Interditar a cidade? Proibir eventos de qualquer natureza em áreas verdes? Criar a patrulha do carrapato? Convenhamos, nada disso é plausível.
Obviamente, há medidas e lições que podem ser extraídas do que aconteceu. Algumas, a prefeitura já adotou. Uma delas, a de sinalizar as áreas como sujeitas ao carrapato-estrela, tem eficácia próxima a zero. Ninguém vai fazer ou deixar de fazer o que quer que seja porque há uma placa avisando que por pode ser que ali exista o carrapato. Outras, são mais efetivas, como treinar as equipes médicas para identificar mais rapidamente os sintomas da febre maculosa. Sabe-se que a aplicação de doses de antibiótico, especialmente doxiciclina, são eficazes, desde que o diagnóstico seja precoce. Esta é uma medida prática e que produz efeitos, mas nem por isso fácil de ser implementada, considerado o tamanho de Campinas – agravado ainda pelo fato de algumas das vítimas sequer terem sido tratadas na cidade, mas sim em seus municípios de origem.
Há algumas outras ações, muito mais complexas, que precisam ser consideradas, tanto para enfrentar a febre maculosa como outras moléstias da mesma natureza. O biólogo Fernando Reinach, doutor em biologia celular e molecular pela Cornell University, instituição americana respeitadíssima, defendeu, em artigo publicado nesta última semana no jornal O Estado de São Paulo, que precisamos considerar, seriamente, uma mudança na legislação para permitir o abate de capivaras.
Segundo o pesquisador e professor, a capivara é o grande vetor que permite a proliferação dos carrapatos infectados. No exemplo que ele traz, uma capivara é picada por um carrapato que tenha a bactéria da febre maculosa. Esta mesma capivara será picada na sequência por um outro carrapato, que será infectado. O próximo na lista é um humano. As consequências são conhecidas.
O ciclo é permanente e faz com que erradicar a doença das áreas afetadas seja praticamente impossível, até porque o abate de capivaras – que são parentes de ratos, e não de porcos, como eu imaginava – é proibido. Para piorar, em áreas de condomínios e parques, como acontece em Campinas, Piracicaba e outras regiões de São Paulo, não há predadores naturais das capivaras, que se reproduzem livremente, cada vez mais próximas de grandes aglomerados urbanos.
Ainda mais grave, não é raro que gente cansada e preocupada com a multiplicação das capivaras as capturem e soltem em outros municípios, o que pode levar o surto, hoje restrito a algumas regiões, a se espalhar por todo o país. É a receita para o caos. Por isso, Reinach defende o abate das capivaras como uma tentativa de interromper este ciclo. Mas, para isso, há que se mudar a legislação federal. Não é tarefa para um prefeito, nem para uma Câmara de Vereadores. Tem que ser enfrentada pelo governo Federal, pela Câmara dos Deputados e Senado da República, a partir de estudos e análises de especialistas. Quanto antes, melhor.
De qualquer forma, nada disso trará de volta Douglas, Mariana, Eveyn e Erissa. Imagino a dor das famílias diante de mortes tão surpreendentes, de desfechos tão inesperados para pessoas que tinham tanto pela frente, e que nada fizeram que pudesse contribuir para o fim que tiveram além de decidir, por uma razão ou outra, ir à Feijoada do Rosa. Não há alívio possível, não há conforto adequado, não há explicação que atenue a dor.
Sobra a lição, sempre válida, de que a vida é uma dádiva que nos é concedida por tempo indeterminado. Sabe-se que começa e termina, mas nunca se pode ter certeza da duração. O que podemos fazer de melhor é aproveitar cada instante que nos é concedido, vivendo de forma plena de acordo com nossos princípios e valores e, sempre que possível, não deixando muita coisa para o incerto amanhã. Viver o presente e aproveitar cada dia é o que nos resta. E isso, é bom que se diga, não é pouca coisa.
Corrêa Neves Jr é jornalista e CEO da Sampi.net.br, a maior rede de notícias baseada no interior. Este artigo é publicado simultaneamente nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCnet), Campinas (Sampi Campinas), Jundiaí (Jornal de Jundiaí), Piracicaba (JP), Rio Preto (Diário da Região), São José dos Campos (OVALE) e edição Nacional, todos afiliados à rede Sampi de Portais.