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04 de maio de 2024

OPINIÃO

Tropeços de Lula

Evitar desperdiçar tempo com bobagens, se afastar de erros previsíveis e infantis e focar na agenda da pacificação deveriam ser obsessão. Leia o artigo de Corrêa Neves Jr.

Por Corrêa Neves Jr.
Especial para a Sampi

04/06/2023 - Tempo de leitura: 8 min

“Muitos homens cometem o erro de substituir o conhecimento
pela afirmação de que é verdade aquilo que desejam”
Bertrand Russel,
matemático e filósofo britânico

O presidente Lula caminha para completar o primeiro semestre de seu governo. A matemática pode reforçar a impressão de que ele ainda está no início e tem muito chão pela frente, mas a percepção do tempo, que se esvai tão rápido, coloca uma perspectiva menos otimista para o cenário. Já se passaram 12,5% do período que a apertadíssima vitória na disputa eleitoral lhe assegurou no poder. Passou num instante, e Lula tem só mais 7 “instantes” como este pela frente. Somado a isso sua idade, que o fará ser octogenário quando estiver concluindo este mandato, reforça a necessidade, até óbvia, de que ele deveria aproveitar cada dia no comando do Brasil como se fosse o último. Evitar desperdiçar tempo com bobagens, se afastar de erros previsíveis e infantis e focar na agenda da pacificação e da solidificação de nossa frágil democracia deveriam ser obsessões. Não é o que temos visto.

Nas últimas semanas Lula tropeçou tanto que não seria exagero dizer, metaforicamente, que ele capotou. São episódios de deslizes e equívocos que se repetem com tamanha frequência que listar todos resultaria num artigo grande demais. Restringir a análise a apenas dois deles é mais do que suficiente para ilustrar como Lula e seu governo precisam, urgentemente, de um freio de arrumação. Para dizer o mínimo.

O primeiro aconteceu no Japão, do outro lado do mundo, na reunião do G-7, o clube que reúne sete das economias – e democracias – mais avançadas do planeta (China e Rússia não fazem parte, por razões óbvias). O Brasil não é “membro”, mas é convidado vez ou outra para participar dos encontros que se repetem três vezes por ano e reúnem os líderes dos Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido.

Fumio Kishida, o premiê japonês, foi o anfitrião deste ano, que teve lugar em Hiroshima, a histórica cidade onde os Estados Unidos detonaram pela primeira vez uma bomba atômica sobre uma população civil, matando 250 mil pessoas. O episódio marcaria os instantes finais da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Além de Lula, uma outra figura despertava o interesse de todos: Volodymyr Zelensky, o líder ucraniano que trava uma desigual guerra com a Rússia.

Lula fez bons e corajosos discursos durante a cúpula. Defendeu o multilateralismo, o que na prática significa lutar por mais espaço para países emergentes, como o Brasil, e criticou duramente o Conselho de Segurança, reforçando as críticas de que é preciso uma atualização e uma reforma no principal organismo da ONU (Organização das Nações Unidas). “Não faz sentido conclamar os países emergentes a contribuir para resolver as ‘crises múltiplas’ que o mundo enfrenta sem que suas legítimas preocupações sejam atendidas, e sem que estejam adequadamente representados nos principais órgãos de governança global. (...) Sem reforma de seu Conselho de Segurança, com a inclusão de novos membros permanentes, a ONU não vai recuperar a eficácia, autoridade política e moral para lidar com os conflitos e dilemas do século 21”, disse o presidente brasileiro. “O Conselho encontra-se mais paralisado do que nunca. Membros permanentes continuam a longa tradição de travar guerras não autorizadas pelo órgão, seja em busca de expansão territorial, seja em busca de mudança de regime”, insistiu Lula. Falou isso diante do americano Biden e do francês Macron, o que, convenhamos, não é pouca coisa.

Sobre a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, Lula foi muito mais cândido. “Condenamos a violação da integridade territorial da Ucrânia. Ao mesmo tempo, a cada dia em que os combates prosseguem, aumentam o sofrimento humano, a perda de vidas e a destruição de lares. Tenho repetido à exaustão que é preciso falar de paz”, exortou, como se restasse ao invadido alguma grande opção além de resistir. Não condenou frontalmente a Rússia, não elogiou Zelensky pela resistência, não fez um gesto mais duro sequer em relação Putin.

A lógica do presidente brasileiro é tão perversa que não para em pé por meio segundo. Imagine que a Colômbia invadisse o norte do Brasil e um país Europeu, ao invés de condenar o ataque gratuito, dissesse que tanto os colombianos quanto os brasileiros tinham responsabilidade nos eventos e que o importante seria discutir a paz. Tudo isso, enquanto o Acre e estados vizinhos eram bombardeados pela Colômbia. Qualquer brasileiro trataria o “sabichão” europeu como um estúpido sem coração. É exatamente nesta posição que o presidente brasileiro se coloca. Por mais que a paz deva ser negociada, por mais injusto que possa parecer a necessidade de a Ucrânia abrir mão de algum naco de seu território para frear o derramamento de sangue, isso é parte da difícil arte da diplomacia, que ninguém ignora, mas é óbvio que há um agressor e um agredido.

Mas, ainda pior do que as palavras, foram os gestos de Lula que mais macularam a imagem do Brasil. Zelensky entrou numa das sessões do G-7 do qual participam todos os líderes, Lula incluído. Diante da chegada do líder ucraniano, todos se levantaram, respeitosamente, para cumprimentá-lo. Biden, Macron, o alemão Scholz, o indiano Narenda Modi (também convidado), e por aí vai... Todos, solidários a Zelensky. Ou melhor, quase todos. Exceção das exceções, Lula ficou sentado, com cara de tacho, olhando para um papel para não olhar para Zelensky. Não o cumprimentou, não se solidarizou, não dirigiu uma única palavra ao homem que resiste ao pesado ataque de uma superpotência. Foi um gesto infame.

Menos de um mês depois, Lula repetiria novamente um comportamento descolado da realidade. Desta vez, no Brasil, na semana passada, durante a cúpula de países da América do Sul. O anfitrião era o próprio Brasil, e o local do encontro, Brasília. Eram esperados 11 líderes de países sul-americanos. Inclusive, o famigerado Nicolas Maduro, da Venezuela.

Exceção feita aos sectários representantes da extrema-direita brasileira, que costumam ter raciocínios não muito mais sofisticados do que os de uma ameba, ninguém é contra a retomada de algum nível de relação diplomática e comercial com a Venezuela. Até mesmo os Estados Unidos, arqui-inimigos dos venezuelanos desde o governo do ditador Hugo Chaves, tem distensionado paulatinamente a relação e intensificado o diálogo com Caracas. Mas o que o Lula fez foi muito diferente de conversar.

O presidente brasileiro tratou seu colega venezuelano como um herói. Reservou a ele os mais altos protocolos diplomáticos – recebeu para almoço privado, o esperou na rampa do Planalto, postou a guarda presidencial dos Dragões da Independência para “escoltá-lo” e, tanto pior, fez um conjunto de elogios a Maduro que o presidente venezuelano não deve receber nem da própria mulher.

“Primeiro, eu queria dizer aos meus amigos do Brasil e à imprensa brasileira a alegria desse momento histórico que estamos vivendo agora”, disse o presidente brasileiro ao final do primeiro encontro com Maduro.  “Depois de oito anos, o presidente Maduro volta a visitar o Brasil, e nós recuperamos o direito de fazer política e relações internacionais com a seriedade que sempre fizemos, sobretudo com os países que fazem fronteira com o Brasil.”

Aparentemente não inteiramente satisfeito com o tom desproporcionalmente laudatório, Lula foi mais além e disse que a Venezuela é “vítima” de uma “narrativa” de que seria uma nação antidemocrática e autoritária.  “Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo”, disse o presidente brasileiro.

Ver Lula falar me remeteu instantaneamente aos discursos de Bolsonaro sobre a Covid, quando o então presidente brasileiro, descolado da realidade, criava teses absurdas para justificar suas crenças pessoas. Lula, sobre Maduro e a Venezuela, soou tão absurdo quanto.

Não existe nenhuma “narrativa” construída contra a Venezuela. O que há, são fatos, todos eles absolutamente desabonadores para Maduro e seu governo. O país tem hoje 248 presos políticos (pessoas detidas apenas e tão somente por criticarem ou discordarem do que faz Maduro e sua trupe), um número incerto de desaparecidos, corrupção sistêmica e violações em série de direitos humanos, tudo isso resultando numa miséria sem precedentes e em acusações seríssimas que seus líderes enfrentam no Tribunal Penal Internacional de Haia e nos organizamos da ONU.

Como se não bastasse, há ainda o inquestionável êxodo de 7 milhões de venezuelanos, que deixaram o país para evitar perecer de fome, muitos deles rumo ao Brasil, colapsando o sistema de saúde e assistência social de Roraima, que serve como porta de entrada.

De tudo, ficam algumas perguntas para as quais, até agora, não encontrei nenhuma resposta razoável: afinal de contas, por que Lula age assim? O que ganha com isso? O que de proveitoso resulta para o Brasil seu comportamento trôpego?

Lula parece obcecado em terminar de polir sua biografia com o reconhecimento mundial de suas virtudes. Desde que tomou posse, não houve um único mês sem que tenha feito viagens internacionais. Não há problemas nisso e, se o Brasil busca relevância - e é importante que busque - o líder da vez precisa estar disposto a este périplo pelo mundo, ainda que por motivação personalíssima.

Mas daí a ser condescendente com ditadores, buscar neutralidade diante de um conflito onde uma nação invadida é impiedosamente atacada, e reservar honras de Estado a um crápula como Maduro, vai um longo caminho. Até aqui, os passos de Lula têm contribuído muito mais para manter o Brasil na insignificância cultivada nos anos Bolsonaro do que para nos fixar no grupo dos países que ditam os rumos do planeta. Não há nisso qualquer narrativa. É a verdade, pura e simples.

Corrêa Neves Jr é jornalista e CEO da Sampi.net.br, a maior rede de notícias baseada no interior. Este artigo é publicado simultaneamente nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCnet), Campinas (Sampi Campinas), Jundiaí (Jornal de Jundiaí), Piracicaba (JP), Rio Preto (Diário da Região), São José dos Campos (OVALE) e edição Nacional, todos afiliados à rede Sampi de Portais.