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03 de maio de 2024

OPINIÃO

O delírio persistente e a gangrena na caserna

Querer imputar ao presidente Lula a responsabilidade pelo 8/1 não é apenas delírio e desinformação. É também canalhice, pura. Leia a coluna Gazetilha, assinada por Corrêa Neves Jr.

Por Corrêa Neves Jr.
Especial para a Sampi

23/04/2023 - Tempo de leitura: 7 min

“A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos”
Erasmo de Rotterdam,
teológo e filósofo holandês

Bastou a CNN Brasil divulgar nesta última semana, como resultado de um esforço jornalístico elogiável, imagens inéditas e constrangedoras do general reformado Gonçalves Dias, chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), durante os famigerados ataques do 8 de janeiro, para ganhar força novamente na esgotolândia das redes sociais a delirante versão de que foi o governo Lula o responsável pela quebradeira e balbúrdia generalizadas no centro do poder brasileiro.

Pela “tese”, os acampados na frente dos quartéis eram todos “anjos” cordatos, cidadãos de bem, que apenas exerciam o “direito” constitucional de discordar do resultado das urnas. Essas milhares de pessoas travestidas de periquito - que passaram meses uivando o hino nacional como mantra, invocando o “artigo 142” com a sagacidade de uma anta e planejando eternizar Bolsonaro no poder - jamais teriam defendido golpe de estado, ruptura institucional, deposição dos eleitos nem nada do gênero. Teriam marchado a Brasília, motivadas pelo mais alto grau de civismo, apenas para “protestar”, “pacificamente”.

Numa repetição dantesca da “lógica” do abusador que culpa a minissaia da vítima pela violência sexual a que foi submetida, os “patriotas” alegam que o governo Lula deliberadamente facilitou o acesso dos vândalos às sedes dos poderes da República, como se a retórica do ataque às instituições tivesse partido, ao longo de meses, dos apoiadores do candidato que se sagraria vencedor, e não daquele que acabaria derrotado. Quem quebrou tudo seriam petistas que tinham acabado de vencer a disputa eleitoral e tomado posse, e não os patriotas bolsofascistas que amagavam a derrota. Uma das “provas”, a bandeira do Partido dos Trabalhadores registrada nas mãos de um dos delinquentes durante a barbárie de 8 de janeiro. Outra, a resistência do governo Lula de apoiar a criação da CPI do 8 de janeiro.

São argumentos compatíveis com o intelecto de quem acredita que a Terra é plana ou que a vacina faz mal e é parte de um “plano” de “controle” das massas. Já ficou comprovado, como mostram imagens obtidas do circuito interno do Congresso Nacional, que a tal bandeira do PT foi surrupiada da Câmara dos Deputados por um virtuoso “patriota”. Quanto à CPI, nenhum governo gosta delas. Nunca. Bolsonaro tentou frear as que a oposição propunha, comportamento nada diferente do adotado antes dele por Temer, Dilma, Lula, FHC... Há várias razões para que os governos ajam assim, nem todas justificáveis, mas a principal é que os trabalhos de uma CPI invariavelmente paralisam o Congresso Nacional, se transformam em vitrine para a oposição e, como profetizado por Fernando Henrique Cardoso, todo mundo sabe como começa mas ninguém tem ideia de como termina.

Some-se a isso o fato de que, no caso de Lula, o atual presidente tem enfrentado o enorme desafio de desinfetar as Forças Armadas, contaminadas pelo pior discurso político possível durante os anos Bolsonaro. Assumiu em meio a inúmeras dificuldades junto às tropas, com generais rebelados, almirante recusando-se a se reunir com o novo Ministro da Defesa e ameaça permanente de golpe. É evidente que imagens como a de Gonçalves Dias, por mais que ele tenha sido considerado pessoa de confiança por Lula, pouco contribuem para melhorar este cenário e pacificar as relações. Pelo contrário, tem potencial para azedar um pouco mais o clima, porque mostram uma verdade inconveniente, mas nem por isso menos verdade: as Forças Armadas foram cooptadas pelo bolsonarismo de uma forma sem precedentes. Não apenas jovens recrutas ou oficiais de baixa patente, mas também a elite da tropa, onde, imaginava-se, haveria bom senso proporcional à idade e experiência acumuladas.

Muito já se falou sobre o 8 de janeiro, inúmeros detalhes daquela sequência de eventos são hoje de conhecimento público, inclusive por conta das investigações que permitiram a todos com mínima boa vontade ver como foram as trocas de mensagens entre o então recém-empossado ministro da Justiça, Flávio Dino, inquieto e desesperado com as notícias sobre movimentação de pessoas rumo a Brasília, e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), a quem compete a segurança da Capital federal, assegurando que estava tudo certo e sob controle. Ou deste mesmo governador com a presidente do STF, Rosa Weber, incrédula e estupefata diante da inércia do efetivo que deveria proteger a sede da Corte Constitucional brasileira.

Há ainda as “férias” do responsável pela segurança pública do DF, o ex-ministro da Justiça e hoje presidiário e deprimido Torres. A inação do comandante militar do Planalto, Gustavo Dutra, “herdado” do governo Bolsonaro porque a substituição só poderia ser feita meses depois graças às normas das Forças Armadas. Têm-se os relatos da insolente e insubordinada conversa entre o general Arruda, então comandante do Exército, e o ministro Flávio Dino, quando o militar se recusa a cumprir a ordem para desmobilizar os acampamentos, tudo para ganhar tempo para que familiares dos fardados saíssem do local e escapassem da prisão. E por aí seguiu o baile.

Nas últimas horas, ganhou eco uma nova “bomba”, a “revelação” de que Lula esteve no Palácio no dia 8 de janeiro. Eu, a torcida do Flamengo e qualquer pessoa que não flerte com a alienação sabia disso desde... 8 de janeiro. Foi transmitido ao vivo, em tempo real, desde a saída do presidente de Araraquara, onde estava no momento da invasão, até sua a chegada a Brasília e a consequente ida ao Palácio do Planalto. O que as novas imagens revelam, e que só depõem a favor de Lula, é a sua indignação e revolta com o cenário de destruição que ele encontra ao chegar naquela noite no Palácio. É possível ver o presidente gesticulando, inconformado, em mais de uma oportunidade. Resgata-se também a revolta de Flávio Dino, que parece prestes a explodir de raiva. São reações esperadas de quem teve o seu espaço invadido, de quem viu ser depredada a sede dos poderes da República.

E as imagens de Gonçalves Dias? Essas são problemáticas, não pela razão que os bolsonaristas tentam transformar em realidade. O grande problema é que elas traduzem de forma inequívoca o grau de podridão das Forças Armadas. É pavoroso constatar que o general que comandava o aparato responsável pela proteção das maiores autoridades da República chegou ao Palácio do Planalto parecendo zelador de prédio, sem seguranças, sem armas, sem voz de comando, com um punhado de chaves que usou para abrir uma e outra porta. Diante da turba, buscou uma mediação inaceitável com os invasores, gentilmente dialogando com eles, oferecendo água. Apontou educadamente a saída para quem deveria ter dado voz de prisão.

Onde estava a sua equipe? O comandante do GSI anda sempre sem nenhuma proteção? Para que diabos serve o Comando Militar do Planalto? É tão difícil pedir reforços numa cidade que sedia a cúpula das forças de segurança do país?

Resta óbvio que as Forças Armadas estão gangrenadas. A extensão do dano ainda é impossível dizer, mas é difícil acreditar que qualquer processo de recuperação possa seguir adiante sem muitas amputações. Algumas já foram feitas, muitas outras terão que vir na sequência. A pura e simples extinção do GSI, cooptado e infectado pelo general Augusto Heleno, muito provavelmente será uma das próximas. Afinal, nem mesmo da proteção do presidente Lula o gabinete cuidava, responsabilidade transferida para a Polícia Federal, exatamente porque suspeitava-se de sua cooptação.

O papel importante revelado pelas imagens da CNN é de que mesmo entre militares tidos como lúcidos, mesmo na unidade instalada dentro do Palácio do Planalto, o clima golpista era flagrante, o desejo de uma ruptura institucional, evidente, e a falta de liderança daqueles tidos como sensatos, óbvia. O “tratamento” precisa ser imediato – e geral, sob risco de o país continuar permanentemente à mercê do fantasma de um golpe.

Quanto a Lula, pode-se criticar o presidente por muitas coisas, mesmo em início de mandato. Sua complacência com o MST e as invasões de terras é medonha; suas declarações sobre a Ucrânia, um desastre diplomático; a dificuldade de entender a nova economia que rege o mundo, com relações de trabalho muito diferentes daquelas que ele conheceu quando sindicalista, evidente. Mas querer imputar ao presidente Lula a responsabilidade pelo 8 de janeiro não é apenas delírio e desinformação. É também canalhice, pura.

Corrêa Neves Jr é jornalista e CEO da Sampi.net.br, a maior rede de notícias baseada no interior. Este artigo é publicado simultaneamente nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCnet), Campinas (Sampi Campinas), Jundiaí (Jornal de Jundiaí), Piracicaba (JP), Rio Preto (Diário da Região), São José dos Campos (OVALE) e edição Nacional, todos afiliados à rede Sampi de Portais.