27 de julho de 2024
OPINIÃO

Um acerto e vários erros de Tarcísio

Por Côrrea Neves Jr. | especial para a Sampi
| Tempo de leitura: 8 min

“Pense como uma pessoa de ação e aja como uma pessoa que pensa”
Henri Louis Bergson, filósofo e diplomata francês


Foi uma semana intensa para o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), às voltas com múltiplos desafios para além daqueles que envolvem a já atribulada rotina cotidiana de quem tem por função comandar São Paulo. Três se mostraram particularmente complexos – para um deles, a resposta foi firme e rápida, mas para os outros dois, a frustração com as alternativas propostas pelo governo do Estado dificilmente poderia ser maior.

Tarcísio foi bem na resposta à escalada de violência nas escolas de todo o país, com atentados e ameaças que se multiplicam em ritmo exponencial. É um drama de dificílimo enfrentamento, com jovens ignorantes, perturbados e sem limites descontando seus traumas de forma covarde em colegas e professores. Têm-se um combo perverso, com ataques desferidos a facadas e machadadas diante de vítimas sem quaisquer chances de defesa, num tipo de crueldade e sordidez que escapam à compreensão humana.

No início da manhã da última quarta-feira, 13, Tarcísio visitou a escola estadual “Thomazia Montoro”, na zona oeste da Capital paulista, palco de tragédia no final do mês passado, quando um garoto de treze anos esfaqueou e matou uma professora, pelas costas, além de ferir outros colegas.

“Alguns prefeitos têm me procurado e têm me pedido para suspender as aulas e a resposta é que nós não vamos, os jovens não merecem isso. A gente tem que superar essa situação, a gente não pode sucumbir à ameaça, sucumbir à violência. A gente tem que trazer o sonho de volta, e a esperança”, disse Tarcísio, ao anunciar a estratégia que será adotada pelo Palácio dos Bandeirantes.

Há passos concretos. Imediatamente, serão contratados 1000 seguranças privados para atuar nas escolas estaduais. Não estarão armados, mas terão preparo e treinamento para lidar com situações críticas. Uma área específica para denúncias de violência ou ameaça contra escolas vai ser criada dentro do aplicativo da PM paulista. As rondas escolares serão intensificadas, bem como viaturas que não estiverem atendendo ocorrências farão patrulhamento nas proximidades das unidades de ensino. Além disso, 550 psicólogos serão contratados para atuar nas escolas paulistas, semanalmente. O custo total do pacote foi estimado por Tarcísio de Freitas em R$ 240 milhões.

Pode se gostar mais ou menos das medidas anunciadas, pode se ter maior ou menor simpatia pelo governador, mas é inegável que ele agiu. Saiu do campo das ideias para um projeto efetivo, com recursos previstos e prazo de implementação, num espaço de poucos dias. Não é fácil, mas foi feito.

No mesmo dia, um par de horas mais tarde, deu-se o oposto. Acompanhei pessoalmente o evento no auditório “Ulysses Guimarães”, em pleno Palácio do Governo. Tarcísio reuniu 167 prefeitos, outras centenas de secretários municipais e incontáveis vereadores e puxa- sacos a fim de anunciar seu plano para enfrentar o problema de falta de vagas de internação na rede estadual de Saúde. “Talvez (seja) o dia mais importante do nosso governo até aqui”, disse o governador em seu discurso, aplaudidíssimo. Terminado o evento, ninguém entendeu absolutamente nada.

O que o governador anunciou, a regionalização do sistema Cross, que controla quem é internado onde, já existe – e em vários níveis. No âmbito das DRS (Diretorias Regionais de Saúde), espalhadas pelas regiões administrativas do Estado, isso é feito, rotineiramente, num intercâmbio entre cidades da mesma região. Entre as distintas DRS, nas chamadas RAS (Regiões Administrativas de Saúde), também, decidindo para onde vai um paciente para o qual não há vaga na região onde reside. Que tipo de “regionalização” então é essa de que fala Tarcísio de Freitas?

Aparentemente, nem mesmo ele, nem ninguém do governo, sabe. O que deu para entender, apelando para um grande esforço dedutivo, é que querem que hospitais de cidades pequenas sejam mais acionados para atendimentos de menor gravidade, liberando os grandes hospitais de cada uma das 23 regiões do Estado para se concentrar nos casos mais graves. Mas isso já é feito – ou, pelo menos, deveria ser. Pode-se melhorar a gestão aqui e acolá, mas isso nem de longe responde ao desafio do momento, com milhares de pacientes, em todo o Estado, esperando de forma improvisada em PSs e UPAs por vagas que não existem.

Ficou ainda mais esquisito porque logo no início do evento, em outro discurso muito aplaudido, o secretário de Estado da Saúde, Eleuses Paiva, fez um desabafo que tocou profundamente a plateia. Ex-prefeito de São José do Rio Preto, Eleuses disse que ao longo dos últimos anos a parcela do SUS financiada pelo governo federal caiu pela metade. Ainda cutucou na ferida e disse que o Estado se omite, forçando prefeitos a gastar muito mais do que deveriam com saúde, o que tira dinheiro para os necessários investimentos em cada cidade. “Os municípios pedem socorro. Os prefeitos não aguentam mais”, disse. “O modelo atual está se esgotando (...) É chegada a hora do Estado assumir seu papel”. Foi ovacionado. Ficou nisso.

Tarcísio não anunciou um real a mais para a Saúde. Admitiu que falta verba, mas disse que só vai discutir novos repasses depois que melhorar a gestão. Não falou em acelerar as obras de hospitais estaduais em construção em várias regiões do Estado, como Franca, nem sinalizou com qualquer tipo de ajuda para Santas Casas ou hospitais filantrópicos. Foi uma ducha de água fria.

Mas nada foi mais sem noção do que o plano de Tarcísio para lidar com o drama dos moradores de rua concentrados na região da Cracolândia, no Centro da Capital. Qualquer pessoa com pelo menos dois neurônios sabe que é um problema dificílimo e que não existem soluções prontas, muito menos fáceis, e que é preciso criatividade e ousadia para lidar com a questão. Mas a alternativa proposta é tão descolada da realidade que flerta com o ridículo.

Tarcísio quer exportar os milhares de moradores de rua da Capital para o interior do Estado. Mais precisamente, para o campo. Seriam contratados por fazendeiros e sitiantes, que em contrapartida teriam sua produção comprada pelo Estado. O transporte o governo paga, o salário fica por conta de quem contrata. “Temos hoje no estado 187 mil famílias agricultoras que precisam de mão de obra, e cerca de 50 mil moradores de rua na cidade de São Paulo. É possível combinar as duas necessidades”, argumentou o secretário-executivo do Desenvolvimento Social, Filipe Sabará.

Pouco sei sobre o Felipe Sabará, mas me arrisco a dizer que do campo ele não entende nada. Nem vou entrar no mérito da questão já levantada pelos críticos ao projeto que questionam, por exemplo, onde residiriam esses moradores, como ficaria a questão formal da contratação, que garantia haveria de que não seriam escravizados? Deixo esta perspectiva para o padre Júlio Lancellotti e seus simpatizantes, que já fizeram pontuações relevantes. Prefiro focar num ponto fundamental, anterior. Como alguém deteriorado pelo uso contínuo de drogas e entorpecentes teria forças e condições para levantar de madrugada para tirar leite? Ou para trabalhar nas roças, carpindo, de sol a sol? O trabalho no campo é difícil para quem é “da lida”, para quem já está acostumado, imagine então para quem está fragilizado e não tem qualquer familiaridade com a área. Além disso, como seria feito o acompanhamento clínico para evitar que se drogassem nas fazendas e sítios? Ou para atender em momentos críticos?

O mais provável é que, salvo uma ou outra exceção, o sujeito acabaria por abandonar o trabalho depois de alguns dias para correr para o vilarejo mais próximo, para os Centros Pop que se multiplicam, para as ruas e semáforos das cidades maiores em busca de esmolas e drogas. A chance de dar certo é próxima a zero. O risco de que esses moradores de rua levem drogas piores e mais destrutivas, como a K9, para cidades onde ainda não chegaram ou seu consumo é por ora incipiente, enorme. Sem falar no risco de violência, porque nem todo morador de rua é exatamente pacífico, até por conta dos efeitos decorrentes do uso contínuo de entorpecentes.

Por fim, até pela forma como a ideia foi apresentada, têm-se a impressão de que no governo do Estado ignoram que há muitas “Cracolândias” hoje espalhadas pelo interior. A região central de Campinas, por exemplo, tem uma muito parecida com a da Capital, um pouco menor. Em Franca, multiplicam-se os pedintes por diversas ruas. Na vizinha Ribeirão Preto, idem, situação que não é muito diferente de Bauru. Ignorar estes fatos e imaginar que a solução para os moradores de rua da Capital é exportá-los para o interior é de uma torpeza ímpar.

Não é a primeira vez que digo isso, nem acredito que será a última, mas Tarcísio de Freitas precisa, urgentemente, enxergar de fato o interior paulista. Foram os paulistas de fora da Capital que deram a ele a vitória sobre Fernando Haddad. Olhar para o interior com seriedade e respeito, procurar conhecer e entender cada região, é o mínimo que Tarcísio de Freitas precisa fazer. Bem rápido.

Corrêa Neves Jr é jornalista e CEO da Sampi.net.br, a maior rede de notícias baseada no interior. Este artigo é publicado simultaneamente nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCnet), Campinas (Sampi Campinas), Jundiaí (Jornal de Jundiaí), Piracicaba (JP), Rio Preto (Diário da Região), São José dos Campos (OVALE) e edição Nacional, todos afiliados à rede Sampi de Portais.