Em 2020, logo após a morte de dona Olga Bicudo, liderança da Apae Bauru durante décadas, Gisele Aparecida de Camargo Tavares assumiu interinamente a presidência da instituição. Ela já era conhecida da casa, onde trabalhava havia 20 anos, e afirmou à polícia ter aceitado dirigir a entidade "contra sua vontade".
De fato Gisele não tinha poder algum: teve de assinar uma procuração dando plenos poderes a Claudia Lobo e a Roberto Franceschetti Filho, dupla que faria uma devassa nos cofres da Apae a partir de um esquema que desviou, segundo o Setor Especializado de Combate aos Crimes de Corrupção, Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro (Seccold), mais de R$ 7,5 milhões dos cofres da instituição.
A corrupção na entidade só terminaria em agosto de 2024, quando Claudia Regina da Rocha Lobo desapareceu em 6 de agosto, fato que deu início à investigação que prendeu Franceschetti - acusado de assassiná-la - e abriu caminho para que a Polícia Civil abrisse a caixa-preta da instituição. "Não fosse esse crime bárbaro, os desvios de recursos da Apae poderiam jamais ter vindo à tona", diz trecho do documento.
Os detalhes do esquema estão em 427 páginas sigilosas a que o JC teve acesso e sobre as quais a reportagem se debruçou nos últimos dias. Conforme a Polícia Civil verbaliza e o próprio inquérito sinaliza, a Apae Bauru - referência nacional até quando pôde - estava nas mãos de uma verdadeira organização criminosa. Para a polícia, Roberto e Claudia eram "amigos e comparsas".
A movimentação financeira entre os dois revela pouco apreço por zelar os cofres da instituição. Mostra operações verdadeiramente escatológicas com transferências vultosas de valores da entidade às contas pessoais, sem qualquer compromisso com o estatuto da Apae e a própria legislação vigente, demonstra o trabalho policial.
Na terça-feira (3), sete pessoas foram presas acusadas de se beneficiarem direta ou indiretamente dos desvios. Mas as prisões não abrangem todos os integrantes da organização criminosa, que segundo a Polícia contou com a participação de 13 pessoas.
A assunção de Franceschetti à presidência foi fundamental para a continuidade do esquema delitivo. Segundo as investigações, Claudia dizia que deixaria a Apae caso Roberto saísse da entidade algum dia. Não era uma amizade que se limitava somente ao ambiente profissional.
"Roberto apresentava paqueras para Cláudia, pois demonstrava que queria vê-la feliz e conversavam sobre os encontros amorosos de Cláudia no dia seguinte. Então, foi possível perceber grande intimidade entre os dois ao longo da análise das conversas", diz a Polícia nos relatórios.
Em cinco anos de conversa analisados pelo Seccold, aliás, não foi encontrado nada "que pudesse demonstrar alguma discussão entre eles, muito menos algum desacordo financeiro, existindo diversas evidências da prática de corrupção".
Na prática, Roberto e Claudia articularam a criação de um grupo para blindar a diretoria da Apae. Em determinada conversa, por exemplo, há menção a uma reunião cuja pauta envolvia inclusive uma espécie de "superproteção de Claudia para Roberto". "Superproteção de Cláudia para Roberto; Grupo gestor tem conformação de Família; Cláudia - Mãe; Roberto - Filho protegido; Gisele - Filha preterida; Ciúmes; um divisor de águas: Cláudia Se Relaciona Com Roberto como Coordenador Geral desde 2018" foi a pauta a conversa.
A APAE É NOSSA
A blindagem em torno da direção não foi tratada apenas nesta reunião. Uma conversa de 2019 obtida pela Polícia mostra que Roberto e Claudia criaram um círculo restrito de beneficiários de propina - mas que, quando possível, dividiam os valores apenas entre eles e Renato Golino, ex-coordenador financeiro da entidade.
"Viu, sabe o que eu tô percebendo, o negócio seguinte, é, aí do escritório não pode ficar sem nós três aí entendeu. Ou é eu, você e o Renato, tem que ficar pelo menos um, aqui também, todo lugar tem que ter pelo menos um para poder segurar essas coisas né, senão o povo vem, abraça, quer fazer parte (sic)", revela a transcrição do áudio enviado por Roberto.
"Depois de tudo pronto é fácil querer fazer parte né, depois que tá tudo pronto, trabalhamos o ano inteiro tal tal tal agora quer chegar na, chegar no busão e sentar na janelinha. Nem fudendo [...], tem que cercar o que é nosso e a Apae é nossa", respondeu Claudia Lobo.
A dupla também se preocupava em destruir documentos e ocultar os desvios. Em certa ocasião, uma advogada que prestava serviços para a Apae pediu demissão e Roberto afirmou em áudio a Claudia que "a doutora vai cair, sair, porque ela não quer se sujar, o dela a reputação vale muito mais".
E mais: disse para ter cuidado com Gisele, ex-presidente, porque ela seria "boca larga" - a ex-presidente recebeu uma espécie de mesada depois que deixou o cargo.