Diversão garantida. Romance de Socorro Acioli, “A cabeça do santo” é desses livros que prendem o leitor pelo inusitado do enredo e pela habilidosa construção da trama. Um penitente chamado Samuel atravessa dias na estrada para cumprir promessa feita para sua mãe no leito de morte: andar até cidade próxima, procurar pelo pai e acender velas para São Francisco e Santo Antônio. Até aí, nada demais. Descrente, enfrenta dificuldades para cumprir a palavra dada à falecida Mariinha, sua adorada mãe.
Uma chuva forte é dos seus menores perrengues. Abriga-se no que parece ser uma gruta e adormece, exausto dos dias de marcha, sede e fome. Acorda às cinco da manhã ouvindo voz melodiosa cantando em língua estranha, da qual compreende duas ou três palavras que parecem português. Passa a ouvir também o vozerio de mulheres pedindo para Santo Antônio, o santo casamenteiro, um marido. Ao sair do cafofo, percebe que seu abrigo era, na verdade, uma enorme cabeça de santo, apartada do corpo. A estátua gigante estava no alto de uma colina e, a cabeça decepada, ao pé do morro. No entorno, uma cidadezinha chamada Candeias, quase despovoada, com parcos moradores distribuindo-se entre o casario rústico, entremeado de muitas casas abandonadas.
Faz amizade com Francisco, morador local, e a dupla consegue, depois de algumas artimanhas, promover um casamento. A fama do “abençoado” que “ouve vozes na cabeça do santo” e “consegue realizar matrimônios” corre pela região. Candeias torna-se centro de peregrinação, assim como a não tão distante Juazeiro do Norte, do Padre Cícero. Samuel e Francisco ganham dinheiro, agenciados por Aécio, radialista da minúscula rádio local, agora faturando com o renascimento de Candeias (barbearia, lanchonete, restaurante, pousada... reabrem na cidade a fim de atender os romeiros). A história dá voltas e reviravoltas, com Samuel querendo descobrir a dona da misteriosa voz que canta tão docemente em meio ao vozerio das mulheres que pedem e pedem.
Nascida em 1975, em Fortaleza, Socorro Acioli é jornalista. Sempre quis escrever romances. Em 2005, decidiu levar o desejo a sério e conseguiu vaga na oficina literária “Como contar um conto”, dirigida por Gabriel Garcia Márquez, em Cuba. Viajou para a ilha na América Central. A saga para conseguir tal vaga e o primeiro encontro com o escritor colombiano valem a pena. Resumindo: Acioli deveria condensar sua história em um parágrafo a fim de convencer o Nobel de Literatura de que a trama era boa. O enredo baseava-se em história verdadeira, tirada de notícia de jornal, de cidade cearense que mandou construir gigantesca estátua de Santo Antônio. Mas a cabeça do santo foi montada às pressas - sob as ordens de um mestre de obras que bebeu muitas a mais - ao pé do morro em que fora construído o corpo. Não tinha como subir até lá a pesada cabeça de concreto e ferro. Garcia Márquez achou que Acioli inventara a história da cabeça e que o vagabundo “louco que ouvia vozes” era verdadeiro. Só foi convencido do contrário por foto da escritora novata ao lado da cabeça gigante. A realidade goleou a fantasia.
Fernando Pellegrini Bandini é professor de literatura