As pessoas tendem a esquecer das desgraças. Por exemplo: quem se lembra da epidemia da covid-19? A não ser aqueles que perderam entes queridos – e que sequer puderam sepultá-los com os ritos tradicionais –os demais já se olvidaram da calamidade.
O que dizer, então, da crise hídrica de 2013/2014? Não está mais no radar da maioria das pessoas. Mas não se deve perder de vista que tudo piora num país que não leva a sério as emergências climáticas.
As chuvas escasseiam. Os anos 2023 e 2024 foram os mais quentes da História. Nada indica rumo diverso neste 2025.
Os meses de julho, agosto e setembro foram secos. Choveu percentual mínimo da média histórica.
O uso inadequado do solo acaba com os lençois freáticos. A verticalização adensa a demografia. A construção civil, além de se valer de insumos mais poluentes, ainda sacrifica o solo e não deixa espaço algum para a infiltração da água nos lençois freáticos.
As cidades são impermeabilizadas. Só há cimento, concreto, aço, ferro e vidro. Verdadeiras ilhas de calor são fabricadas ininterruptamente nesse fenômeno de conurbação inexplicável e surreal para um país que lembra um continente e não padece de falta de extensão territorial.
O plantio de eucalipto acaba com as nascentes. Não se vê movimento efetivo de recuperação de córregos.
Por querer “brincar de Deus”, o homem sacrifica o curso natural das águas e retifica os rios, querendo se apropriar de margens que são destinadas a servir de escoamento quando das eventuais enchentes. Pior ainda, a população trata o rio como se fosse um gratuito coletor de imundície.
Nível de falta de civilidade é o menosprezo que se devota às águas no Brasil. Em países mais adiantados, as pessoas valorizam as margens dos rios e constroem suas casas voltadas para seu leito.
Aqui, uma quase regra é fazer com que os fundos das residências confrontem com os cursos d’água, pois estes se encarregam de transportar a imundície produzida por quem consome demais, desperdiça demais e não sabe descartar seus resíduos.
O quadro brasileiro em relação à água é dramático. Quantos milhões de brasileiros vivem privados de tratamento de esgoto? Sem saneamento básico, aquilo que se considerava um privilégio tupiniquim – abundância de água doce – não passa de ilusão.
As represas estão contaminadas. Há esgoto in natura lançado nelas. Com as fezes, vem cocaína, expelida pela urina. E o tratamento anacrônico, muito diferente das nações adiantadas, não consegue eliminar os resíduos de fármacos. Tomamos, como se fosse água, um complexo líquido submetido a processos químicos que se utilizam cada vez mais de substâncias sintéticas. No fundo, aquele líquido parecido com água – pois com aparência incolor, presumivelmente insípida e talvez inodora – tem coliformes fecais, cocaína, antibiótico, anticoagulante, antidepressivo, anticoncepcional, anti-tudo, mais os malditos microplásticos.
Outro problema adicional: poços artesianos feitos de forma amadorística, também contaminam o aquífero cristalino e o veneno que as emissões de gases tóxicos produzidos por combustíveis fósseis produzem, chega à atmosfera, ao solo e, infelizmente, à água.
Nós brincamos com algo muito sério. Sem petróleo, pode-se viver. Sem água não. E a água brasileira está na UTI. Quem se propõe a salvá-la?
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo