Em 25 de outubro de 1975 um jornalista foi morto nas dependências de um prédio público em São Paulo. Sua morte, há 50 anos, mudou os rumos da história recente do Brasil. Chamava-se Vlado Herzog, havia pouco mais de um mês que dirigia o departamento de jornalismo da TV Cultura, em São Paulo. Intimado por agentes da repressão, comparecera na manhã do dia 25, um sábado, à sede do Departamento de Operações de Informações, o DOI – órgão do Exército – em São Paulo. Na véspera, na noite de sexta-feira, fora procurado pelos agentes na TV Cultura, que deveriam levá-lo para depor. Herzog alegara que tinha um telejornal para fechar, e que iria ao DOI na manhã seguinte.
Para surpresa de muitos, sua sugestão foi aceita. Herzog cumpriu a palavra e no sábado chegou ao DOI pelas próprias pernas. Saiu de lá morto. Transformou-se em símbolo da resistência à ditadura.O assassinato de Herzog nos porões da repressão era a parte visível de uma luta bem maior dentro do governo. A queda de braço opunha a linha dura que queria manter a repressão – no episódio, representada pelo comandante do II Exército, general Ednardo Mello e a “tigrada” dos porões – e o grupo que preconizava a abertura “lenta, gradual e segura”, comandado pelo então presidente Ernesto Geisel e seu ministro, general Golbery do Couto e Silva. Era briga de pesos pesados.
O jornalista Rodolfo Konder (1938/2014) resumiu o embate: “Quando dois elefantes brigam, quem sofre é a grama”. O chão pisado, no caso, era o de opositores ao regime.O aparato repressivo cometera, além de mais um crime, um grande erro. Não reconhecendo a morte sob tortura, a repressão soltou a versão costumeira de suicídio. Produziu foto em que o preso aparecia pendurado ao basculante de uma janela, de pernas dobradas. Teria se enforcado. Mas a farsa não foi engolida. A morte de Herzog mobilizou a sociedade como há tempos não se via. Apesar de ordem contrária, houve velório, ainda que discreto.
Seu enterro – que deveria ser rápido e sem público no domingo, dia 26 – ficou agendado, por iniciativa da viúva, Clarice, para a segunda-feira. A ele compareceram dezenas de pessoas. Mas o grande ato estava por vir. Por iniciativa do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, presidido por Audálio Dantas, ficou marcada uma cerimônia para celebrar Herzog. O cardeal Paulo Evaristo Arns abraçou a ideia. Ofereceu a Catedral da Sé para um ato ecumênico oficiado por ele, líder católico, o rabino Henri Sobel – Herzog era judeu – e o reverendo presbiteriano Jaime Wright. A celebração ocorreu na sexta-feira, dia 31 e levou à Praça da Sé cerca de oito mil pessoas, que lotaram a catedral, as escadarias e o entorno. Havia mais de 500 agentes vigiando o local, prontos para atirar caso houvesse algum grito de ordem ou cartaz contra o regime. Tudo correu em paz. Em seu livro “A ditadura encurralada”, o jornalista Elio Gaspari escreveu: “Naquela tarde, a oposição brasileira passou a encarnar a ordem e a decência. A ditadura, com sua “tigrada” e seu aparato policial, revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria reafirmação”.
Fernando Bandini é professor de Literatura