A moça nasceu, cresceu e se casou em uma cidade do sertão nordestino - lugar onde a maioria das pessoas se acostuma com um cotidiano sem surpresas e a violência cresce. Há escassez de tantas coisas!
Teve filhos, e o marido, que veio de fora, era algoz. Escondia os hematomas com a roupa. Tinha vergonha de desabafar com a mãe.Estudou apenas o suficiente para saber ler e escrever. Depois, passou a ajudar na roça. Os pais dela eram severos, punham de castigo, contudo não batiam. Veio a sentir as dores na carne em sintonia com as batidas do coração, logo depois do casamento.
Durante alguns anos, imaginou que fosse desse jeito mesmo - até que ele chegou em casa com uma arma e prometeu matá-la. Foi à delegacia e os policiais disseram que, se estava sendo ameaçada era porque, em algo, não cumpria com o dever de esposa.
O marido, cada vez mais bruto, acabaria por assassiná-la. Com os filhos era seco, mas não judiava. Entendeu que a única alternativa seria fugir, apesar da dor de deixar os filhos. Sorrateiramente, na noite seguinte a ida à delegacia, foi para a estrada e conseguiu carona com um caminhoneiro. Foram quatro os motoristas que se apiedaram dela para poder chegar à capital de outro Estado.
Arranjou um emprego de faxineira. Entrou em contato com a mãe, pediu sigilo e passou a mandar dinheiro para que comprasse alguma coisa para os filhos.
O rancor do homem se transformou em ódio. Procurou-a, armado.Diante do sumiço dela, entregou duas das crianças à avó materna e ficou com o mais velho, que já podia ajudá-lo no submundo em que atuava.
Ela, através da mãe, procurava assistir os filhos. Voltou anos mais tarde, quando, numa discussão, o marido fora morto. Naquela época, o filho mais velho já se enveredara pelo mundo do crime. Estudou pouco, aprendeu brutalidade com o pai. Para aplacar as dores tantas que carregava desde menino, usava drogas. Morreu em um atrito de grupos rivais do tráfico.
O segundo filho, em comum com o irmão, tinha passado poucos anos pela escola. Insistiu em ser do bem. Mocinho franzino, disse que aguentava, ao encarregado e, a partir da adolescência, começou a trabalhar na trituração o de rochas em uma pedreira. Os pulmões se ressentiram com o pó. Teve uma infecção forte no ano passado. Ficou internado quase um mês. Ao melhorar um pouco, retornou ao mesmo trabalho.
Escassez de conhecimento de leis trabalhistas, de remédios adequados para o problema, de alimentos para se fortalecer, de leito no hospital, de olhar no entorno de seu trabalho,para perceber que ele não se encontrava bem e não deveria voltar.
Não queria ficar sem dinheiro algum. Morava com a avó que o criara e a ajudava no que era possível. A doença voltou aos pulmões já danificados -como sua história. A mãe enterrou o segundo filho na semana passada.
Ele e o irmão foram vítimas das diferenças sociais, da falta de uma educação libertadora.
Humanamente, não fez diferença um escolher o bem e outro escolher o mal - porque os empobrecidos não fazem diferença à maioria dos que têm muito em bens materiais e poder. A indiferença - e até a aversão - à pobreza desvia e mata filhos de Deus. Mães com sentimento de derrota choram em seus túmulos, mas derrotada é a sociedade que não se compromete com o próximo.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista