07 de dezembro de 2025
OPINIÃO

Chegamos


| Tempo de leitura: 3 min

Pois é, estimadas pessoas.

Chegamos ao último trimestre deste ano. Caramba! Bem real mesmo: o tempo não passa – voa. E, aqui chegando, independente do olhar religioso, nos resta agradecer por termos chegado até aqui, enquanto muitos ficaram para trás e tantos outros se foram antes de nós. Essa constatação, por si só, já é motivo de reflexão, pois a vida é feita de encontros, desencontros e despedidas, de alegrias e dores, e cada dia vencido é uma vitória.

O mês de outubro, para mim, carrega um peso muito especial. É impossível não recordar a tragédia que enfrentei e que minha família inteira também enfrentou: a morte abrupta do meu pai, da qual, aos sete anos de idade, fui testemunha. Ele estava a serviço e foi eletrocutado.

A cena ficou marcada na minha memória como uma ferida aberta que, mesmo cicatrizada, ainda dói. Essas marcas me acompanham até hoje, lembrando-me da fragilidade da vida e da necessidade de seguir em frente, apesar das ausências.

Mas a vida não me deixou apenas a dor; deixou também exemplos. E aqui expresso toda minha gratidão à minha mãe que, com apenas 35 anos de idade, se viu viúva, encarregada de cuidar sozinha dos cinco filhos deixados por meu pai. Poderia ter sucumbido às dificuldades, mas fez o contrário: com coragem nos conduziu, e o resultado foi brilhante: os cinco irmãos tornaram-se pessoas de bem, apesar das barreiras impostas pela sociedade às pessoas negras.

O acidente que motivou a morte de meu pai aconteceu em 6 de outubro. Seis dias depois - como é de conhecimento geral– se celebra no Brasil o “Dia das Crianças”, instituído pelo Decreto Federal n.º 4.867, de 1924. Imaginem como foi aquele primeiro ano de festa infantil, tão próximo ao luto! A alegria das crianças se misturava ao silêncio da saudade.

Prossigamos, porém, na luta. Este breve relato, com todo o respeito, não é um “mimimi”, mas a mais cristalina verdade, capaz de inspirar um livro, um filme ou uma novela. Afinal, a vida nos desafia a cada segundo e também nos mostra que é possível superar perdas e dores profundas. É claro, nem todos possuem a mesma desenvoltura ou coragem para resistir e recomeçar. Mas o essencial é lembrar que sobreviver já é, em si, um ato de resistência.

Como disse Gilberto Gil: “A gente nasce, cresce e enquanto não morre vive.” Pois é, viver é exatamente isso: um desafio atrás do outro. Exige esforço quase inalcançável, especialmente diante do modo como pessoas negras são tratadas no Brasil: exclusão na educação, descaso na saúde e estatísticas cruéis no sistema de justiça, onde de cada três presos, dois são negros e por ai vai.

Já afirmei: o combate à discriminação, ao preconceito e ao racismo não carece de leis. Temos legislação vasta, robusta e suficiente, mas o problema está no cumprimento e na falta de punições exemplares, barradas por interesses e privilégios.

Ainda assim, há avanços: os tribunais superiores passaram a exigir formação continuada do Judiciário em temas como racismo e discriminação, medida que pode ampliar a consciência crítica de quem julga. Afinal, quem desconhece sua própria prática de exclusão dificilmente poderá combatê-la.

É certo que essa formação obrigatória causará choque em muitos profissionais, que acabarão se reconhecendo, talvez pela primeira vez, como agentes de práticas racistas. Isso não é diferente do que ocorreu com o professorado, quando da implementação da lei que obriga o ensino da história da África, da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Muitos resistiram, negaram-se a cumprir a lei, justamente porque a reflexão lhes expôs verdades incômodas. E, infelizmente, até hoje, essa legislação não é cumprida em sua totalidade.

Portanto, outubro me lembra perdas, mas também da luta e da responsabilidade de enfrentar as desigualdades que se repetem geração após geração. Viver, como disse Gilberto Gil, é o que nos resta enquanto a morte não chega. Que seja uma vida capaz de transformar e construir caminhos mais justos.

“Um povo sem conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes (Marcus Garvey)".

Eginaldo Honório é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)