A Democracia tem por fundamento o interesse coletivo, formalizado em um pacto social assentado em uma Constituição, elaborada e aprovada por uma Assembleia Nacional Constituinte.
Foi assim que, em 1988, o Brasil firmou sua Constituição, a Constituição Cidadã, um conjunto de regras e compromissos éticos que deveriam reger a Nação e proteger a sociedade contra abusos do poder.
Sabendo que nenhuma obra humana é perfeita, a própria Constituição previu mecanismos de atualização. Entre eles, a PEC - Proposta de Emenda Constitucional -, cujo processo de aprovação, rigoroso, exige dois turnos de votação em cada Casa do Congresso Nacional, com o apoio de, no mínimo, três quintos dos parlamentares em cada votação. A intenção é clara — evitar que mudanças oportunistas subvertam os princípios constitucionais.
Com a rejeição da PEC da Blindagem pelo Senado fica clara a importância de tais salvaguardas, evitando medidas que, ao invés de servir ao interesse público, servem a interesses corporativos e particulares.
O que propunha essa PEC?
Segundo textos divulgados pela imprensa e análises de entidades da sociedade civil, a PEC - sugestivamente denominada “da blindagem” - cercaria o parlamentar de proteções que o colocariam fora do alcance da Lei:
Autorização prévia para ação penal: deputados e senadores só poderiam ser processados criminalmente no STF se a respectiva Casa (Senado ou Câmara), por votação secreta e maioria absoluta, autorizasse.
Voto secreto: a autorização, tanto para processos quanto para casos de prisão, seria decidida sem que os eleitores soubessem como votou cada parlamentar.
Foro privilegiado ampliado: presidentes de partidos com representação no Congresso também passariam a ter foro especial no STF - Supremo Tribunal Federal.
Especialistas, juristas, entidades de combate à corrupção e a própria imprensa apontam os riscos graves dessas salvaguardas, entre eles:
Favorecimento da impunidade — ao subordinar processos criminais à autorização política, a medida poderia travar ou simplesmente impedir responsabilizações.
Falta de transparência — o voto secreto esconde dos eleitores como votou seu representante, eliminando com isso qualquer possibilidade da sua prestação de contas ao seu eleitorado.
Enfraquecimento das investigações — a blindagem poderia paralisar apurações em curso, como as que envolvem emendas parlamentares, e dificultar novas investigações.
Tramitação acelerada e opaca — críticos também apontam que, no afã de aprovar a medida, o processo legislativo correu de forma acelerada, sem amplo debate público, o que agrava as suspeitas sobre sua real motivação.
A blindagem de candidatos eleitos cairia como uma luva para as facções criminosas, que se empenhariam em designar alguns dos seus membros - que naturalmente seriam eleitos - para concorrer nas eleições, bem como, se eleitos, ficaram livres de investigações.
O risco de retrocesso
A Constituição é o pacto que deve proteger o interesse da cidadania e não para blindar políticos.
Quando deputados e senadores legislam em causa própria, em benefício de seus interesses imediatos, a democracia se fragiliza e a confiança da população no sistema político se corrompe ainda mais.
Ao exigir que o Judiciário dependa da autorização do Legislativo para investigar ou punir parlamentares, a PEC da Blindagem tentou criar um escudo de super poderes, que se distancia do espírito republicano e transforma representantes - deputados e senadores - em uma casta acima da lei.
Se aprovada pelo Senado, essa emenda não apenas abriria um ciclo de impunidade, como também reforçaria a percepção de que o Estado brasileiro trabalha contra — e não a favor — do povo.
Não por outra razão se diz que a Democracia requer eterna vigilância.
Miguel Haddad é ex-prefeito de Jundiaí e ex-deputado federal