No início da segunda metade do século passado não eram muitas as opções para crianças e adolescentes numa cidade provinciana como Jundiaí. Um dos divertimentos semanais eram as sessões vespertinas de cinema no Ipiranga. Sua inauguração foi um acontecimento. Um salão que parecia luxuoso, com leve declive que garantia a todos assistir aos filmes no telão “Cinemascope” e um segundo andar, com muitas fileiras de poltronas confortáveis.
Todos os domingos à tarde eram projetados filmes de faroeste. A garotada vibrava e gritava a cada lance mais arrojado. Durante a semana, outras películas mais românticas. Às vezes eu ia com minha prima, Lídia Lopes de Camargo, depois Ienne, ao Ipiranga e também ao Politeama. Raramente íamos ao Cine Marabá, que ocupou o espaço do antigo salão Paroquial da então “Matriz” de Nossa Senhora do Desterro.
Lembro-me de ter assistido com minha avó, Anna Rodrigues Barbosa, um filme no Marabá: “Em cada coração uma saudade”. História de pequenos irmãos que ficaram órfãos e que eram deixados, um por um, em casa de quem poderia adotá-los.
Choramos juntos. E que linda lembrança a de ir à matiné com a avó que me mimava por ser seu primeiro neto.
Outros filmes que me impressionaram: “Imitação da vida”, “Esquina do pecado” e “Orfeu da Conceição”. Era filme passado no Rio, baseado na peça de Vinicius de Moraes e trilha musical de Luiz Bonfá e Tom Jobim.
O romance entre os jovens Orfeu, interpretado por Breno Mello e Eurídice, papel de Lourdes de Oliveira, acabava em tragédia. Àquela época, não existia para mim qualquer resquício de racismo. Nunca me preocupei com a cor das pessoas. O padrinho de minha mãe era um negro retinto, promessa de minha avó. Também negra a melhor amiga de minha mãe, cuja filha ela batizou. Daí o encanto por Eurídice, a única das intérpretes de “Orfeu da Conceição” ainda viva, com quase noventa anos, a residir em Paris, no 15º arrondissement. Ela é conhecida por “Madame Camus”, pois se casou com o diretor do filme, o francês Marcel Camus.
Àquela altura, não tinha qualquer noção de que esse filme ganhou a “tríplice coroa” do mundo cinematográfico: a Palma de Ouro no festival de Cannes de 1959, o Oscar e o Globo de Ouro de 1960.
Interessante saber que não foi apenas o Brasil que esse filme, na verdade financiado por franceses e italianos (já que o presidente Juscelino Kubitscheck não quis patrociná-lo), impressionou quem o assistiu. Foi por causa dele que uma jovem da sociedade provinciana e conservadora de Chicago, aos dezesseis anos e branca, encantada com a beleza negra, viesse a se casar com um queniano. Seu nome era Ann Dunham e o fascínio que o filme exerceu sobre ela é narrada por seu filho, na autobiografia “Sonhos do Meu Pai”. O autor do livro se chama Barack Obama.
Dos três cinemas que eu frequentei mais assiduamente em minha infância e adolescência, o Ipiranga era o preferido. Havia também o “Cine Ideal”, na Rangel Pestana, onde assisti “O Saci”, de Rodolfo Nanni. E o “Cine República”, na Vila Arens. O menos preferido era o “Marabá”. Ali, quando funcionava o Salão Paroquial, foi a festa de casamento de meus pais, em 1º de maio de 1944. Enquanto o casal posava para as fotos de João Janckzur, os convidados saíam com bolos intactos nos pratos de vidro e cristal da família. Havia racionamento de açúcar e uma recepção para a qual foram convidados todos os paroquianos, acabou antes de que os noivos chegassem.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)