03 de maio de 2025
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GAZETILHA

O triunfo da farsa

Por Corrêa Neves Jr. | Editor do GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 6 min
Arte/Sampi
Capa da Notícia
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG)

"Uma mentira pode dar a volta ao mundo enquanto a verdade ainda calça os sapatos"
Jonathan Swift, escritor inglês

O Brasil inteiro assistiu. Muitos de nós, mais de uma vez. Isso fez com que o vídeo postado pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) ultrapassasse a marca de 300 milhões de visualizações. Mas não foi apenas um fenômeno de visualizações. Foi, também, uma lição de argumentação, senso de oportunidade e resultado prático.

Vinte e quatro horas depois da postagem inicial, o governo Lula rendia-se, incondicionalmente, a um dos seus maiores algozes. Estava revogada a norma técnica sobre uma mudança em alguns procedimentos da Receita Federal que ganhou o imaginário popular e fez com que o país inteiro passasse as duas últimas semanas comentando a “taxação do PIX”, o monitoramento sobre as contas bancárias dos cidadãos e a possível ofensiva do fisco contra a economia informal.

O recuo do governo, com a expressa revogação da portaria da Receita Federal, deixa claro que nestes tempos de disseminação incontrolável de informações falsas, sem moderação ou responsabilização das redes sociais, sem pudor de quem se opõe a uma ideia usando, muitas vezes, argumentos construídos a partir de falácias, pouco há a fazer se uma “tese” qualquer viralizar. Seja boa ou ruim, progressista ou conservadora, e mais importante ainda, esteja baseada em fatos verdadeiros ou não.

Há que se considerar que a crise da taxação do PIX não começou com o PL, nem com Nikolas Ferreira, nem com qualquer outro opositor do presidente Lula. A gênese se deu dentro do próprio governo, quando algum iluminado decidiu uma medida que poderia ser interpretada como uma mudança sensível na economia deveria ser feita sem avisar nem explicar nada à população. Tem-se visto com frequência, no governo federal e em muitas prefeituras, este tipo de “doutrina do silêncio” ganhar força junto aos principais ocupantes do Executivo.

É como se, para fugir de eventual polêmica, alguns destes “gênios” que assessoram nossos governantes os convencessem de que o melhor a fazer diante de um assunto complexo é não falar nada. Parecem acreditar que as pessoas comuns, os opositores, os jornalistas e comentaristas são todos idiotas incapazes de ter dúvidas e fazer perguntas básicas. Incrivelmente, esta espécie de parasita que se aninha nos corredores palacianos mostra alguma resiliência, e tem conseguido colocar governantes em maus lençóis. Desta vez, não sei o nome do parasita, mas sei que quem saiu mais do que manchado foi o presidente Lula.

Não havia, em nenhum ponto da instrução normativa 2219 da Receita Federal, nada que minimamente indicasse qualquer hipótese de taxação do PIX. Também não trazia grandes novidades. Basicamente, dizia que todas as instituições financeiras, inclusive administradoras de cartões de crédito e fintechs (empresas de tecnologia que operam no mercado financeiro, como alguns bancos digitais) teriam que informar ao fisco as movimentações de contas e detalhes dos PIX dos correntistas, sempre que superassem os R$ 5 mil mensais (pessoas físicas) e R$ 15 mil (no caso de empresas).

É notícia velha. Há mais de 20 anos os bancos e corretoras de valores são obrigados a fazer o mesmo. Se você é correntista do Bradesco, Santander, Itaú, Caixa Econômica, Safra, Banco do Brasil ou qualquer outro “bancão”, já está sendo monitorado, nos mesmos patamares, há duas décadas – e vai continuar assim. A diferença é que clientes de bancos digitais e usuários do PIX passariam a estar sujeitos às mesmas regras. E, isso, claro, poderia, ao menos em tese, levar a autuações do fisco caso comprovasse movimentações financeiras absolutamente incompatíveis com o declarado.

Era relativamente simples de explicar, não é mesmo? Sim, era. 
Bastava dizer, de forma didática, que a Receita Federal não estava entrando em campo para cobrar imposto de quem movimenta mais de R 5 mil. E que o problema é gente que declara ganhar, por exemplo, R$ 10 mil por mês e movimenta R$ 1 milhão. Este é o grande problema, não o vendedor de picolé.

Mas o governo nada fez. O parasitismo do silêncio aniquilou qualquer explicação, a norma foi publicada, o jornalismo fez sua parte para tentar esclarecer, a oposição entrou em campo e o País mergulhou no pânico. Primeiro, graças ao clã Bolsonaro, com a ideia de que haveria o imposto do PIX. Depois, com a tese de que, mesmo sem o imposto, todo mundo que movimenta mais de R$ 5 mil por mês poderia ser autuado.

Foi só então que o governo tentou reagir. Mas ao invés de um discurso simples, poderoso, baseado em argumentos que qualquer pessoa pudesse entender, escalou técnicos da Receita Federal, gente do Ministério da Fazenda e o próprio titular da pasta, Fernando Haddad, para traduzir em miúdos o que ninguém estava conseguindo compreender.

A emenda saiu pior que o soneto - não funcionou, obviamente, porque o pânico já estava instalado. Há algumas semanas escrevi sobre isso neste mesmo espaço. Neurociência explica: diante do medo, as pessoas ficam incapazes de processar argumentos racionais. E o Brasil estava em pânico.

A pá de cal na medida, no ânimo do governo e em qualquer tentativa de coibir grandes sonegadores que usam PIX foi colocada pelo deputado Nikolas Ferreira. De camiseta preta, num fundo preto, gravou o vídeo que chegou a 300 milhões de visualizações. Sim, é verdade que isoladamente, em cada argumento apresentado, ele não mente. É exatamente aí que reside o maior perigo. Porque apesar de utilizar argumentos verdadeiros, inclusive com a ressalva, feito pelo próprio, de que o PIX não seria taxado, na prática seu discurso levou a uma conclusão muito diferente e gerou profunda desconfiança na população.

Quem assiste ao vídeo sai convencido de três coisas: o governo mente; o governo não vai taxar o PIX hoje, mas pode taxar amanhã; o fisco vai começar a multar todo mundo que movimenta mais de R$ 5 mil. Nikolas mentiu como poucos, falando apenas a verdade. Não é um exercício retórico fácil, mas ele conseguiu. A norma foi revogada.

Claro que o presidente Lula e todo o governo federal foram os grandes derrotados. Mereceram. Erraram, desde o início. Mas isso nem de longe é o mais importante. Governos quaisquer colecionam vitórias e fracassos; faz parte da vida democrática. A grande questão é que a “vitória” de Nikolas Ferreira é uma ameaça não apenas para Lula, mas para o próprio deputado. O mesmo instrumento que se mostrou eficiente para atingir o governo que combate pode – e será usado – contra ele e o grupo do qual faz parte.

Este é o X da questão. Não há mais espaço para um debate real de ideias. Os argumentos não estão mais calcados em fatos, mas apenas em suposições e hipóteses. Assim como ele fez e conseguiu impedir o governo de implementar uma medida técnica, outros farão o mesmo.

Lula não deu conta do embate, e isso é problema dele. O perigoso, insisto, é que ficou provado que é possível iludir o país, criar o pânico e forçar a revogação de uma norma federal baseado apenas e tão somente em fake news e em poucos vídeos postados em redes sociais. Talvez até o próprio Nikolas tenha percebido o tamanho da armadilha e de seus riscos. Após a euforia inicial, ele disse numa entrevista que o “governo deveria fazer suas políticas”, independente da opinião pública ou da repercussão nas redes. É um fato, mas a realidade é bem mais complicada. Nesta semana, a verdade foi a maior derrotada. E isso nunca é bom. Para ninguém.
 
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.