O sangue sempre foi um muito valorizado na nossa cultura ocidental, em particular no período medieval, vide o reflexo presente em expressões linguísticas vindas da mesma época: “dívida de sangue”, usada para demandas muito profundas e implacáveis ou “sangue azul”, usado para diferenciar as qualidades da realeza, dentre outras tantas.
A filosofia oriental dá suporte também a esse tipo de ideia, mesmo vinda de períodos anteriores a esse. Nela, o sangue é chamado de Xue, se referindo não somente ao líquido em si, mas também de toda a sua capacidade nutridora de alcançar diferentes locais do nosso organismo com fluxos diferentes. Seria o que hoje os médicos chamam de “hemodinâmica”.
Devido à sua natureza moldável, flexível (pois trata-se de uma estrutura líquida) e a capacidade de receber nutrientes e gases (oxigênio e gás carbônico), o sangue pode ser eleito como a substância de maior potencialidade Yin do ser humano. Sendo o Yin uma característica marcante do gênero feminino é bem natural a relação da relação da mulher e o sangue, expressa no decorrer do ciclo menstrual.
No entanto, a filosofia oriental e a teoria da medicina tradicional chinesa vão mais além. O Xue recebe bem mais que partículas elementares provenientes da nossa respiração ou da digestão de alimentos. Ele é capaz de receber a nossa consciência enquanto dormimos.
Na visão dos primeiros médicos orientais, o ciclo de sono e vigília (que é o período em que estamos “acordados”) tem a ver com a alternância do local onde a consciência se encontra. Caso estejamos em contato e interagindo com o mundo “exterior”, ou seja, outras pessoas, enxergando os objetos e ouvindo os seus sons, nossa consciência se encontra nas “cinco aberturas”, que é o modo arcaico e oriental de dizer “cinco sentidos”.
Ao passo que, ao dormir, podemos ter experiências e consciência tão intensa quanto despertos, mas ela não ocorre acerca do ambiente ao nosso redor. Neste caso, a consciência se volta para o mundo interior, tem contato com medos e vontades mais escondidos e para isso ela se assenta ... no sangue.
Por essa linha de pensamento é como se as emoções e aspirações, expectativas, tudo o que sentimos, tivesse a capacidade de ter um representante seu no nobre líquido vermelho de nossas veias e artérias, e nossos sonhos seriam uma interpretação da nossa consciência sobre todos esses elementos.
Pessoas com ansiedade, agitação, estresse, expectativas exageradas e mesmo com dores ou inflamações pelo corpo desenvolvem processos de natureza “quente” potencialmente prejudicando a característica mais “fria” do Yin sanguíneo. Desta forma, a consciência não consegue se aquietar e terá sonhos agitados, violentos e mesmo insônia, que a impossibilidade de se interiorizar.
A ciência moderna parece que começa a vaticinar essa mesma ideia. Já identificamos pequenas moléculas na composição do sangue que são derivados de inflamações, processos de “manutenção” do corpo que exigem aumento do metabolismo e, portanto, aumento do “calor”. Descobrimos, ainda, que essas e outras pequenas substâncias secretadas nestas condições adversas afetam o funcionamento do cérebro e com isso, o nosso comportamento, pensamento e mesmo o ritmo de sono.
O que mais seremos capazes de descobrir sobre o que está escrito neste precioso tecido fluido? Vai descobrir quem mantiver a consciência calma e com sangue “frio”.
Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)