O “Poema de Natal”, de Vinícius de Moraes, fez parte de minha fala como oradora da Faculdade de Letras do UniAnchieta em 1976: “Para isso fomos feitos: /Para lembrar e ser lembrados/ Para chorar e fazer chorar/ Para enterrar os nossos mortos —/ Por isso temos braços longos para os adeuses/ Mãos para colher o que foi dado/ Dedos para cavar a terra”.
Até 1986, em Finados, dirigia-me ao Cemitério Nossa Senhora do Desterro para rezar e enfeitar o túmulo de meus bisavós paternos: João Nepomuceno de Andrade e Angélica Rosa de Sousa Castilho. Dentre os valores com que fui criada, fazem parte as homenagens à minha ascendência. Rezávamos também no túmulo de minha bisavó materna, Celecina Mendes Pereira Gandra e de meu tio-avô, Aldo. Não conheci nenhum deles.
Mergulhava nas preces sem intensidade de melancolia, pois não nos avistamos, contudo procurava levar as flores mais bonitas. As árvores, tão grandes e tão antigas, silentes, pareciam me observar.
Prosseguindo com o poema de Vinícius: “Assim será a nossa vida:/ Uma tarde sempre a esquecer/ Uma estrela a se apagar na treva/ Um caminho entre dois túmulos —/ Por isso precisamos velar/ Falar baixo, pisar leve, ver a noite dormir em silêncio”.
Chega um tempo, porém, em que inúmeras pessoas não se encontram mais e a saudade faz parte do ar que se respira. Experimento esse tempo.
Passo pelas ruas da cidade e contemplo espaços antigos, mesmo que hoje estejam ocupados por construções diferentes, e não me chega a alegria de outrora, por estarem vazios de gente com as quais teci laços.
Ao adentrar o cemitério, diversas vezes por ano, vêm-me tantas pessoas cujo féretro acompanhei ou não, mas que permanecem tocando com leveza o coração.
Meu avô Castilho, na sepultura das duas filhinhas, que morreram com menos de três anos, escreveu: “Pureza, graça e inocência/ depositadas aqui. / Terra, não pese sobre elas, / pois não pesaram sobre ti”. Bem assim, no cemitério, pessoas que foram singeleza em minha vida e gostaria de revê-las.
Cora Coralina, em seu poema “Meu Epitáfio”, afirma que “não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos”. Linda colocação.
Embora creia firmemente na Eternidade e no reencontro, pela misericórdia de Deus, atualmente, no Cemitério Nossa Senhora do Desterro, lembranças doloridas me envolvem. Vejo meu pai com seu sorriso fácil na cadeira de balanço, ouvindo música. Vejo minha mãe, com seu acolhimento diferenciado, tecendo belezas de crochê, bordado, tricô... Vejo e não posso abraçá-los ou me aconchegar no colo macio que assoprava meus medos. Guardiões de minhas vitórias e derrotas e estimulando o passo posterior.
Ao término do “Poema de Natal”: “Não há muito que dizer: /Uma canção sobre um berço/ Um verso, talvez, de amor/ Uma prece por quem se vai — Mas que essa hora não esqueça/ E por ela os nossos corações/ Se deixem, graves e simples. / Pois para isso fomos feitos:/ Para a esperança no milagre/ Para a participação da poesia/ Para ver a face da morte —/De repente nunca mais esperaremos.../ Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/ Nascemos, imensamente”.
Renascidos no Céu, para pesar menos a saudade, sussurram, na brisa que passa nas árvores centenárias, cantigas de ninar.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)