22 de dezembro de 2024
OPINIÃO

O segredo do vinho de laranja


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Meu pai era uma pessoa sem muita conversa, talvez tenha aprendido com ele este jeito de ser. Observador, tinha a impressão que ele, antes de dizer algo, analisava quem falava com ele. Voz baixa, pausada, analisava antes de dizer o que imaginava. Era assim que fazia no seu dia a dia, sempre procurando ver se tinha algum filho por perto para acompanhar suas ações. 

E era assim que trabalhava suas atitudes: quando chegava do serviço sabia exatamente o que ia fazer em seguida. E fazia! Exatamente como pensou e planejou! Um dos planejamentos envolvia a elaboração do vinho de laranja, uma receita que nenhum dos filhos questionou de onde viera. E a colheita da laranja era feita no próprio quintal: a árvore do fruto, ele chamava de laranja caipira. A colheita era feita rapidamente: ele segurava duas ou três sacolas no chão e fazia um dos filhos subir na árvore para efetuar a colheita. Geralmente, o filho escolhido ou o que estava sempre mais perto dele era eu. E lá subia eu na laranjeira. Subia rapidamente em busca dos galhos mais altos. Parecia divertido isso, mas sempre ouvindo as orientações dele: esta laranjeira tem espinhos, cuidado com eles. E a colheita começava. Ele abria a sacola, lá no chão e, do alto da árvore, lançava a fruta. Se fosse jogador de basquete, confesso que seria um ótimo profissional, pois não jogava uma laranja fora do alvo. Claro que ela estava bem abaixo de mim e era só soltar o fruto, mas isso requeria um certo treinamento intelectual: não errar o alvo para não ser chamado a atenção! 

Após um certo número de frutos jogados, meu pai começava a repassar as laranjas para uma caixa: a sacola servia apenas para receber o fruto: duas ou três laranjas se chocando poderiam sofrer ferimentos e isso afetar o sabor do produto final. Colheita concluída, começava o processo número dois que era o de tirar o suco da laranja, misturar com o açúcar e colocar para fermentar num garrafão de, imagino, trinta litros. E este processo era fiscalizado apenas por meu pai. Só ele sabia o tempo certo de fermentação, só ele sabia ao certo como estava o andamento do preparo. Só ele sabia quando todo o processo estava concluído. Por curiosidade, às vezes eu controlava o tempo para saber quantos dias aquilo ficava fermentando. Mas segredo industrial é segredo industrial. Ele não falava para mim e eu não perguntava para ele. 

Concluído o processo de fermentação, meu pai engarrafava o vinho, lacrava a boca da garrafa com parafina e colocava num baú no barracão existente no quintal para “descansar”! Quando apareciam pessoas especiais – e isto só meu pai sabia quem era especial para ele – ganhava um litro do vinho. E haviam garrafas de vinho que ficavam anos estocadas no baú e quanto mais velhas – e isto é regra geral para os vinhos – a qualidade melhora. 

Às vezes, numa visita, ele chamava um dos filhos e dizia para ir ao baú e pegar a terceira garrafa da quarta fileira, por exemplo, pois ele sabia, exatamente, a data de produção de cada uma e porque o amigo que recebia tal brinde tinha este privilégio. E era assim que seu Alcindo, meu pai, curtia seu vinho, sempre atento, sempre cuidando das garrafas, sempre procurando presentear alguém em especial. E o vinho de laranja de meu pai era realmente especial, pois eram poucas pessoas que sabiam produzir um vinho de tal qualidade. Mas o melhor disso tudo era esperar meu pai chamar, abrir uma garrafa e nos fazer provar o novo vinho. E a gente saboreava com prazer, vivendo em cada gole o sabor de aventura de preparar tudo aquilo.

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)