Há sempre uma possibilidade de mudança de acordo com a perspectiva do olhar.
O menino buscava uma forma de liberar a violência contida. Tantos acontecimentos. O medo das atitudes da mãe, do pai, do tio, da tia, do primo... Tratavam-no como gente grande diante dos problemas. O tamanho, o raciocínio, a possibilidade de atitudes não correspondiam aos infortúnios dos adultos. Nas entranhas do morro se escondia para pensar naquilo que deveria fazer se os acontecimentos se repetissem. Um balde de água resolveria o problema se a mãe outra vez colocasse fogo na sala que também era quarto? O dedo na garganta do pai o faria vomitar a pinga que tirava o carinho dele e a voz mansa? Se conseguisse saber as horas e desse o remédio para a tia, ela não teria mais ataques de fúria? Se tivesse um carrinho de pedreiro e conseguisse ir buscar madeira velha para o fogão de lenha, não faltaria mais comida? Ficava horas pensando nos problemas de sua vida de poucos anos e ninguém achava falta dele. Sabiam que estava em algum canto com suas cismas. A avó falava que seria pensador.
Não havia muito tempo que ouvira a história do Rei Davi. Período de guerra. Saiu do acampamento um gigante chamado Golias. Usava na cabeça um capacete de bronze e no corpo uma couraça de escamas muito pesadas. Golias gritou para que escolhessem um homem para lutar com ele. Foi Davi, apenas um jovenzinho. Escolheu cinco pedras lisas, pondo-as no alforje de pastor, que lhe servia de bolsa. Golias veio ao encontro dele com comentários depreciativos. Davi colocou a mão no alforje, tomou uma pedra e arremessou-a com a funda, ferindo o inimigo na fronte. O gigante caiu com o rosto por terra.
O menino principiou a guardar as pedras de “Davi” que encontrava pelos caminhos para se defender. Venceria o litro de álcool nas mãos da mãe; o copo de cachaça do pai; a faca da mão da tia e tantas outras coisas. Começou até a exercitar a jogar pedras em lugares diferentes com o propósito de acertar o alvo. Precisaria de rapidez.
Retornou ao seu canto para ruminar as ideias. E se acertasse errado e machucasse alguém da família. A mãe, o pai, o tio, a tia, o primo, ninguém era Golias. Tinham um jeito que o incomodava muito e lhe dava medo inúmeras vezes, porém não eram o gigante Golias. Ninguém da família o chamaria para a briga.
A professora, que é toda carinho, soube da história da pedra. Preocupou-se com a violência que as pedras guardadas poderiam conter. Sugeriu que fizessem juntos uma coleção das pequeninas como ele. As primeiras vieram de sua filha. Ficou deslumbrado com as formas, os tons e o brilho das pedrinhas e ele mesmo passou a procurar outras. Reparou na beleza das pedras brasileiras, que lhe apresentavam. Algumas lhe davam com os nomes como ametista, jaspe, ônix, pedra da lua, pedra do sol, quartzo rosa... Tornaram-se o seu tesouro. Aonde ia, observava se não havia no chão uma pedra perdida. Uma vez por semana lavava o pote e as pedras. Quando as horas do Gigante Golias surgiam e balançavam seu coração, buscava um esconderijo com seu pote de pedras e imaginava que construiria com elas uma escada para o Céu.
A(o) mestra(mestre) de verdade consegue direcionar olhos amedrontados e tristes para encantos do cotidiano.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)