- O que é preciso para apagar uma vela? - me perguntou a criança, de cabelos pretos cortados curtos, vestida somente com bermuda e avental “de paciente” do hospital das clínicas da UNICAMP. Olhando para os olhos pálidos dela estava eu, de jaleco e estetoscópio na orelha cursando o internato, fase da formação médica onde atendemos dentro da enfermaria, no caso, a pediatria.
Passaram-se 25 anos dessa história, vejam só. Estava fazendo o exame no pequeno paciente, que esperava uma cirurgia para o dia seguinte. Em troca da colaboração, ele me pediu para contar-me uma anedota.
- Bem… - disse eu, ensaiando uma cara de desconfiado, dividido em pensar sobre velas e auscultar o pequeno e descompassado coração - ... É preciso assoprar a vela?
- Não… - respondeu com um riso contido.
- Talvez água para jogar sobre a chama? - nova tentativa do médico neófito.
- Não!... - Mais riso, desta vez nada contido - ... É preciso que ela esteja acesa! - desmanchou em gargalhada o pequerrucho.
Eu levei tempo para entender, mas este pequeno estava ensinando um tanto mais de medicina do que o som atípico do seu coração. Ele me atentou sobre fatos óbvios que ignoramos pela pressa em remediar algo incômodo, nos expondo a falhas importantes, como no luminoso e chamuscado exemplo: para apagar algo, precisamos primeiro reconhecer a existência do fogo, para, a partir daí, verificar o que é necessário para apagá-lo.
Outro exemplo, muito comum no nosso meio: a qualquer dor muscular recorre-se automaticamente a um anti-inflamatório, produzindo alívio imediato e solução rápida. Contudo, porque estava doendo, mesmo? Seria a dor de fato, uma inflamação? Caso se comprove, por que ocorreu?
Ainda seguindo a metáfora do meu pequeno paciente, ao “medicar” sem um diagnóstico estamos “direcionando água” a uma região que exala cheiro de fumaça, mas sem ter a certeza de que existe uma chama acesa ou mesmo vestígio de fogo. Seria o local da dor o verdadeiro endereço do problema?
Dentro da medicina chinesa reconhecemos que a dor, por vezes, é manifestação de um processo maior, ocasionalmente mais interno e distante de onde o percebemos. Mesmo na visão biomecânica da osteopatia, encontramos suporte a esse fenômeno: dores no cotovelo de um jogador recreativo de tênis com frequência indicam uma escápula pobre de mobilidade, deixando a cadeia de movimento, que vai desde nossa base, no chão, até a nossa mão, fragilizada por inteiro. A dor só se manifesta na articulação do cotovelo, mas a correção dela deve ser ampla, dos pés à cabeça.
Anti-inflamatórios alopáticos não são acessórios ruins, eles existem para tratamento, alívio da dor e conforto no movimento. Até mesmo a cura, em alguns casos. O problema está no mau uso do potencial deles, quando não estão indicados ou mesmo faz-se o uso desproporcionado.
Por isso, quando doer, vamos nos lembrar da gargalhada do meu pequeno professor diante do incauto médico e nos certificarmos da existência de uma “chama”, onde ela se encontra e qual o seu tamanho para somente depois lhe enviarmos a água, sopros e borrifos necessários.
Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)