Uma característica bem notável da cultura oriental, facilmente observável mesmo aos olhos de quem pouco a conhece, está o respeito pela ancestralidade. Muito disso se deve às raízes filosóficas que acabaram por ser a base teórica que sustenta essa cultura (taoísmo e confucionismo) e que permeiam o conhecimento de várias áreas adjacentes, mesmo a medicina chinesa na sua versão mais tradicional.
Na medicina é dito que a “base” da nossa energia vital, patamar de onde se começa a desenvolver e acumular a energia “extraída” do meio ambiente, vem dos nossos pais. O genitor do sexo masculino nos presenteia com uma carga de energia ressonante com a potencialidade mais ativa e expansiva da grande energia (a que chamamos de yang) e, a partir dessa quantidade de energia, construímos a nossa própria vida.
Funciona mais ou menos como uma herança: uma quantidade de energia recebida para ser aplicada como um “capital inicial” de onde construímos a nossa própria saúde. Em alguns textos clássicos, essa energia chama-se “o tesouro” porque a ela recorremos quando temos necessidade (alguma doença séria que nos consuma, por exemplo) e a partir dele também temos as possibilidades de realizarmos os nossos maiores feitos e empreitadas na vida.
Quando observamos uma “virada” na vida de alguém, a conquista de um objetivo, seja ele material ou não, superação de algum desafio ou mesmo “cortes” de algo que nos prende e diminui, pode-se ter a certeza de que ali recorreu-se “ao tesouro”. Ele, injetando uma dose de energia ancestral no nosso sistema, forneceu a força necessária para a transformação e expansão do ser. Eu me considero realmente um privilegiado de acompanhar vários destes processos, profissionalmente, no meu consultório.
Observo, contudo, uma peculiar dificuldade do ser humano imerso na cultura ocidental moderna de acessar essa força dentro de si. Seria como ter um valor enorme à “disposição no banco” para ser usado, oriundo da herança dos nossos ancestrais vitoriosos na vida, mas sem poder “sacar” nada disso pois a senha encontra-se restrita no nosso subconsciente. Por quê?
Confunde-se muito o respeito que devemos para essa energia com afetividade, concordância, lealdade cega e até mesmo serventia. Respeitar a energia paterna implica em tomá-la para si e dela fazer o melhor uso para a construção da sua própria vida. Isso é o que o espírito paternal deseja mais: ver o sucesso do seu filho, por vezes até além do seu próprio, através do uso das “ferramentas” (da vida) que ele próprio ajudou a apresentar à sua descendência.
O respeito nada tem a ver com opiniões pessoais, limitações ou expectativas sobre o que deveria ser a relação paternal; o importante, para a força vida, é que essa energia foi entregue em forma de potencialidade e que se realize produzindo uma prosperidade e felicidade, para que o ciclo se repita na próxima geração.
Caso coloquemos estes aspectos relativos para além do que é essencial (que é o recebimento da potência yang - o pai latente dentro de cada um de nós) corremos o risco de perder, soterrado na nossa insegurança diante da vida, a chave (ou a “senha”) para acessar o que temos de melhor dentro de nós: a nossa herança ou aquilo que, reforço na minha escrita, os chineses ancestrais chamavam de “tesouro”.
Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)